O Globo, n. 32756, 13/04/2023. Economia, p. 15

Apagando incêndio

Renan Monteiro
Geralda Doca
Eliane Oliveira
Sérgio Roxo
Carolina Nalin
Raphaela Ribas
Glauce Cavalcanti


No dia em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegou à China para uma visita de Estado, o governo passou o dia tentando evitar uma crise após o anúncio de que pretende apertar o cerco a marketplaces asiáticos. Na véspera, o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, informou que vai adotar medidas para combater o que avalia como sonegação de impostos de plataformas digitais, como Shein, Shopee e AliExpress, entre outras. Para isso, acabaria a isenção de impostos para remessas internacionais com valor inferior a US$ 50 (cerca de R$ 250) para pessoas físicas. Estas plataformas ganharam espaço entre o consumidor brasileiro, e o assunto teve repercussão negativa nas redes sociais com receio de aumento de preços de importados, gerando uma disputa de narrativas entre diferentes grupos políticos.

Na tarde de ontem, Shein era um dos temas mais comentados no Twitter, com mais de 58,5 mil tuítes contendo a palavra-chave que dá nome à plataforma chinesa. O ponto de inflexão se deu a partir de um post da primeira-dama Janja, que saiu em defesa do governo. “Tô aqui no avião com o ministro Haddad (da Fazenda) que me explicou direitinho essa história da taxação. Se trata de combater sonegação das empresas e não taxar as pessoas que compram”, escreveu.

Sonegação no e-commerce

Técnicos da área econômica explicam que a isenção para remessas entre pessoas físicas vinha sendo usada para que empresas pratiquem fraudes no comércio eletrônico. Atualmente, não há incidência de imposto se alguém envia uma remessa ou vende algum item de até US$ 50 em uma operação entre pessoas físicas. Essa isenção não é válida para quem faz compras em plataformas digitais, como Shein e AliExpress. A taxação é de 60% sobre o valor das encomendas, mas o próprio governo reconhece que não há efetividade nessa cobrança.

O governo avalia que as empresas tentam fugir do pagamento de impostos com medidas que simulam uma operação entre pessoas físicas. Um dos mecanismos para isso é colocar como remetentes nomes de pessoas físicas. Outro estratagema é listar na nota fiscal um valor abaixo do da mercadoria para caber na cota de US$ 50. E há casos também em que as compras são divididas em diferentes pacotes para driblar a cobrança do imposto.

Ao Jornal Nacional, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, disse que a medida não terá impacto sobre empresas que atuam na legalidade:

“A fiscalização que está sendo colocada é sobre uma atividade. Toda empresa que é séria, que atua dentro da legalidade de forma regular, não vai sofrer qualquer tipo de consequência negativa”, afirmou, acrescentando que o governo já identificou a estratégia de enviar contêineres com produtos fracionados e subfaturados para fazer parecer que se trata de operação entre pessoas físicas, muitas vezes com nomes fictícios, até mesmo de artistas de cinema, o que classificou como um desrespeito ao governo e à sociedade. O cerco fechado a estes marketplaces também faz parte da estratégia do governo para aumentar a arrecadação para viabilizar o novo arcabouço fiscal. A estimativa é que a taxação destas operações resultaria em receita extra de até R$ 8 bilhões.

Embora a iniciativa busque combater sonegação de impostos e responda a uma demanda do varejo nos últimos anos, o governo avalia que houve um erro de comunicação na divulgação das medidas. No fim da tarde, o Ministério da Fazenda divulgou uma nota. “Nunca existiu isenção de US$ 50 para compras on-line do exterior. Portanto, não faz sentido afirmar que se pretende acabar com o que não existe. Nada muda para o comprador e para o vendedor on-line que atua na legalidade. O que o Ministério da Fazenda pretende fazer é reforçar a fiscalização. A partir da medida provisória, o exportador vai ter que prestar declaração antecipada com dados do exportador e de quem compra, além do produto.”

A pasta informou que a isenção de impostos até o limite de US$ 50 que está em vigor hoje só se aplica para envio de pessoa física para pessoa física. “Se, com base nele, empresas estiverem fracionando as compras, e se fazendo passar por pessoas físicas, estão agindo ilegalmente”, afirma a nota.

Com a mudança, não haverá mais distinção na tributação entre encomendas de pessoas físicas e jurídicas.

Indagado pelo GLOBO ontem, Barreirinhas, da Receita Federal, se limitou a dizer que nunca existiu isenção para o comércio eletrônico.

—Temos repetido isso sempre, mas parece que está havendo muita desinformação.

Influenciadores acionados

Após o episódio, a avaliação do governo é que iniciativas com impacto em grande parte da população deveriam passar pela Secretaria de Comunicação Social (Secom) antes de vir a público. O caso provocou desgaste para o governo nas redes. A Secom teve que articular um contra-ataque para conter o mal-estar, verificado inclusive na parcela do eleitorado mais identificada com Lula, as classes C e D. Influenciadores foram acionados para tentar mudar a narrativa.

Em uma postagem, o youtuber Felipe Neto destacou que “algumas empresas estão cometendo fraude para fugir do pagamento de impostos”. O governo passou a divulgar cards com esse enfoque para rebater o discurso de opositores de que o governo quer prejudicar o consumidor de baixa renda. “Preocupado com suas compras on-line? Caalma!!! Tudo continua igual para quem compra e vende legalmente pela internet, inclusive o preço! As novas medidas visam inclusive a proteção dos direitos dos consumidores”, dizia um dos cards divulgados.

As idas e vindas em torno do tema foram tantas que um influenciador brincou: “Lula vai taxar Shopee, Shein e AliExpress: desfazendo o L. Lula vai taxar apenas as empresas: faz o L de novo”.

Apesar da turbulência nas redes, integrantes da comitiva do presidente na China afirmaram que o clima é de tranquilidade. Na avaliação de uma fonte envolvida com a visita de Estado, só haveria problema caso os chineses entendessem a taxação como discriminatória. Como a medida é voltada para produtos oriundos de qualquer país, não apenas da China, a expectativa é que não haja cobranças por parte de Pequim.

Procurada, a Shein informou que está comprometida em gerar valor para a indústria, os consumidores e a economia do Brasil: “Reconhecemos a importância em propor melhorias para as regras no Brasil de modo a fornecer segurança jurídica para os operadores e garantir que milhões de brasileiros possam continuar a ter acesso ao mercado mundial, bem como a artigos produzidos localmente”.

A Shopee informou que mais de 85% de suas vendas são de vendedores brasileiros e não de fora do país. “Diferente de outras plataformas que dependem da importação de produtos, o foco da Shopee consiste em conectar vendedores e consumidores locais e ajudar as empresas brasileiras a crescer e prosperar on-line”. A AliExpress não respondeu até o fechamento desta edição.