Correio Braziliense, n. 21533, 01/03/2022. Ciência & Saúde, p. 12

"Atlas do sofrimento humano"

Paloma Oliveto


Metade da população mundial — 3,3 a 3,6 bilhões de pessoas — já paga um preço alto pelas mudanças climáticas e, mesmo que a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris seja cumprida, haverá “impactos severos e irreversíveis” nos ecossistemas, com consequências graves para abastecimento de água, energia e segurança alimentar. Os alertas são do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (IPCC/ONU), um grupo que reúne cientistas independentes internacionais para, a partir de centenas de pesquisas, apresentar os cenários futuros de um planeta cada vez mais quente. 

O volume 2 do sexto capítulo da publicação, que serve como base para as discussões das conferências climáticas da ONU, as COPs, destaca as perdas e danos associados às mudanças climáticas. “O relatório de hoje é um atlas do sofrimento humano, é um testemunho constrangedor da falta de liderança climática”, afirmou o secretário-geral da ONU, António Guterres, na coletiva de imprensa onde os resultados foram apresentados. Bastante irritado, criticou o setor privado por fazer promessas de corte de emissões sem, contudo, tomar medidas. Também cobrou de governos ações robustas, como o fim do uso de carvão mineral até 2040. “Eu vi muitos relatórios científicos durante minha carreira, mas nenhum como este.”

O resumo do relatório Mudanças Climáticas 2022: Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade foi aprovado no domingo por 195 governos membros do IPCC em uma sessão virtual e apresentado ontem. O documento destaca que o aumento das ondas de calor, secas e inundações já está excedendo os limites de tolerância de plantas e animais, levando à mortalidade em massa. Cada décimo adicional de calor, diz o painel, pode levar ao desaparecimento de até 14% das espécies terrestres.

Geografia

Esses extremos climáticos estão ocorrendo simultaneamente, causando impactos em cascata cada vez mais difíceis de gerenciar, diz o IPCC. Eles expuseram milhões de pessoas à insegurança alimentar e hídrica aguda, especialmente na África, Ásia, América Central e do Sul, em Pequenas Ilhas e no Ártico. “Essa vulnerabilidade tem cor, raça, gênero, etnia e geografia”, comenta Patrícia Pinho, um dos autores do relatório e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia. “A grande mensagem é que a mudança climática é um brutal agravador de desigualdades e um perpetuador da pobreza”, acredita Stela Herschmann, especialista em política climática do Observatório do Clima. 

O relatório destaca que um dos ecossistemas afetados é a Floresta Amazônica, onde os impactos das mudanças climáticas e do desmatamento produzem “perdas severas e irreversíveis de serviços ecossistêmicos e biodiversidade”, caso a temperatura, no fim do século, esteja 2°C acima da registrada na era pré-industrial. O documento mostra que doenças que já são desafiadoras para regiões tropicais, como a dengue, podem afetar bilhões de pessoas em outras posições geográficas devido ao aumento da área de incidência do mosquito transmissor, Aedes aeqypti. 

Jeffrey Kargel, cientista do Instituto de Ciências Planetárias de Tucson, no Texas (EUA), se diz “chocado” com as revelações do IPCC. “Os impactos listados — como secas, inundações, precipitação e abastecimento de água, furacões, derretimento de geleiras e camadas de gelo, aumento do nível do mar, derretimento do gelo marinho do Ártico e incêndios florestais — foram previstos por décadas. No entanto, admito estar chocado e surpreso com a rapidez e a intensidade com que eles estão se acumulando. Pessoas ao redor do mundo estão observando com seus próprios olhos em suas próprias cidades, vilarejos e fazendas.”

“Este relatório reconhece a interdependência do clima, da biodiversidade e das pessoas e integra as ciências naturais, sociais e econômicas mais fortemente do que as avaliações anteriores do IPCC”, disse Hoesung Lee, presidente do IPCC. “Ele enfatiza a urgência de ações imediatas e mais ambiciosas para lidar com os riscos climáticos. Meias medidas não são mais uma opção”, comentou. 

“Em cidades, o número de pessoas expostas a secas e enchentes muito provavelmente mais do que dobraria entre 2000 e 2030, com 350 milhões de pessoas a mais expostas a escassez hídrica devido a secas com 1,5°C de aquecimento”, diz o relatório. “Muitos impactos de trajetórias de overshoot (quando se ultrapassam os limites seguros) seriam irreversíveis numa escala de séculos a milênios.” Entre eles, estão a possibilidade de derretimento de geleiras e solos congelados (permafrost) e a perda de habitats costeiros. E isso se o mundo conseguir alcançar a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris, limitando a 1,5°C o aumento da temperatura em 2100, tendo como base o fim do século 19. Desde essa época, o mundo está 1,1ºC mais quente e, segundo os especialistas do IPCC, até 2030 (uma década antes do previsto), aumentará mais 0,4ºC. 

“À luz dos compromissos atuais, as emissões globais vão aumentar quase 14% na década atual. Isso representará uma catástrofe. Vai destruir qualquer chance de manter viva a meta de 1,5ºC”, destacou António Guterres, apontando o dedo para os grandes países emissores. Para abril, é esperado o terceiro capítulo do relatório, onde serão apresentadas soluções para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Porém, o documento atual enfatiza que muitas das tendências previstas pela ciência já podem ser consideradas irreversíveis.