O Globo, n. 32755, 12/04/2023. Mundo, p. 17

Dragão voraz

Ana Rosa Alves


Ao desembarcar hoje na China, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fará também um aceno ao futuro. Os mais de 20 acordos que devem ser firmados durante a passagem do petista pelo gigante asiático abrem as portas para uma troca ainda mais intensa entre chineses e brasileiros, contribuindo para consolidar um movimento que não diz respeito apenas ao Brasil, mas a toda a América Latina, onde a China vem ganhando espaço aceleradamente desde o início do século. Tal movimento dispara alertas em Washington, mas frente à atração mútua e a décadas de negligência e inação, não há muito que a Casa Branca possa fazer, dizem analistas ouvidos pelo GLOBO.

Dianteira na América Do Sul

Lula tinha motivos para querer visitar o presidente Xi Jinping ainda nos primeiros cem dias de governo, planos que esbarraram na leve pneumonia que adiou a viagem prevista para março. Pequim é não só o maior credor soberano, mas também o segundo maior parceiro comercial da América Latina. Quando se leva em conta só a América do Sul, a dianteira já é do país de Xi.

O crescimento do Produto Interno Bruto chinês na primeira década do século —entre 2000 e 2008, a média anual foi de 13% — e o boom das commodities fizeram o comércio com a região pular de US$ 12 bilhões em 2000 para US$ 450 bilhões em 2021, após um incremento anual de 41%. Até 2035, as estimativas do Fórum Econômico Mundial é que o volume ultrapasse US$ 700 bilhões.

Os investimentos estrangeiros diretos chineses (IED) nas nações latino-americanos têm ficado acima de US$ 4,5 bilhões anuais desde 2016, segundo uma análise do centro de pesquisa Atlantic Council. Só em 2022 foram entre US$ 7 bilhões e US$ 10 bilhões, contra os US$ 8,4 bilhões para a União Europeia e os US$ 4,7 bilhões para os EUA.

O aumento dos investimentos coincide com a queda dos empréstimos chineses aos governos latino-americanos. Em seu auge, entre 2007 e 2016, a média anual de dinheiro emprestado ficava na casa dos US$ 10 bilhões, direcionados principalmente para projetos de infraestrutura como portos e usinas. Em 2020 e 2021, foi zero —impacto da pandemia de Covid-19 e da desaceleração da economia chinesa, mas também de uma maior sofisticação no relacionamento.

— No início, muitos desses acordos, sobretudo os empréstimos, eram movidos por relações governamentais — disse ao GLOBO Pepe Zhang, pesquisador do Atlantic Council.

— Hoje vemos uma relação mais madura, com mais iniciativa do setor privado.

O aprofundamento também se reflete na expansão dos interesses chineses, que veem a América Latina como mercado para suas empresas de tecnologia e de bens de consumo. Para Pequim, como o dito em seu mais recente conjunto de diretrizes para a América Latina, de 2016, é uma oportunidade de crescimento mútuo e cooperação Sul-Sul. Para críticos em nos EUA, uma tentativa de Pequim de aumentar seu domínio sobre a região.

— Fala-se muito sobre o que a China quer dessa relação, mas é muito importante falar do livre arbítrio dos países latino-americanos. No caso brasileiro, por exemplo, não é uma via de mão única. Não é só a China acenando, a visita do presidente Lula é um sinal de que a região também acena para a China —pondera Zhang.

Se a China consegue penetração na região historicamente na órbita americana, é parte graças ao vácuo deixado por Washington. Há décadas foi se a Doutrina Monroe, política do século XIX para anular a influência e intervenção de países europeus nas então recém nascidas repúblicas latino americanas. O interesse de manter o comunismo longe se dissipou com o colapso soviético em 1991.

Resposta dos EUA

A virada do milênio só aumentou o distanciamento: primeiro com a guerra ao terror e, depois, com a política externa americana elegendo a contenção da China como prioridade máxima. Três meses após os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que ditariam as políticas do Departamento de Estado para a década seguinte, Pequim ingressou na Organização Mundial do Comércio (OMC). Desde então, as relações com a América Latina dispararam.

— Os mais beligerantes defendem que os EUA contenham a influência chinesa, mas essa perspectiva não oferece uma resposta eficaz — disse Xiaoyu Pu, cientista político da Universidade de Nevada.

— Os governos latinoamericanos querem oportunidades de negócios e criação de empregos. E a China pode oferecer isso de alguma forma.

O estreitamento dos laços gerou resposta americana, como uma série de iniciativas ao longo dos anos. A Parceria para a Prosperidade Econômica das Américas foi lançada pelo presidente Joe Biden. O programa de seu antecessor, o republicano Donald Trump, foi o América Cresce. A Área de Livre Comércio das Américas (Alca), que Washington traçou nos nos 1990, descarrilou.

Para Marcos Cordeiro Pires, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), faltam continuidade e ações concretas —são muitos slogans, diz ele, mas sem resultados objetivos. Os interesses americanos na região, argumenta, hoje são focados no combate às drogas, à imigração irregular e à manutenção do embargo a Cuba.

Com um país polarizado, recursos econômicos limitados e um Congresso dividido, há pouco que Washington possa fazer. Do ponto de vista comercial, os EUA são concorrentes do Brasil na produção de carne, soja e ferro, por exemplo. O potencial de investimentos em infraestrutura, por sua vez, não chega nem perto do chinês com sua iniciativa Cinturão e Rota.

Não alinhamento regional

Prestes a completar 10 anos, o plano global de infraestrutura recebeu um empurrãozinho brasileiro para sua penetração na América Latina.

— Até mais ou menos 2013, quem cumpriu um papel de investimento em infraestrutura na América Latina era o BNDES, que colocava dinheiro para apoiar empresas brasileiras de engenharia —disse Cordeiro Pires.

— As empresas de engenharia da China ocuparam na América do Sul um espaço que antes era das empreiteiras brasileiras quebradas pela Operação Lava-Jato.

Vinte e um países latinoamericanos fazem parte da iniciativa, e o governo brasileiro pondera sobre o custo-benefício de aderir ou não durante a viagem desta semana.

Para Brasília e seus vizinhos, é um jogo de equilíbrio. Lula, por exemplo, foi a Washington há cerca de dois meses, cultivando a relação com Biden. Da ida à China, já há acordos firmados em áreas como energia limpa e construção de navios.

— A maioria dos países quer uma boa relação com ambos. A questão-chave é se haverá espaço para isso daqui para a frente — disse Pu.