O Estado de São Paulo, n. 46659, 17/07/2021. Política p.A8

 

AS FORÇAS E A INVENÇÃO DA URNA ELETRÔNICA

 

Alvo do presidente. Militares integraram o grupo de 'notáveis' escalado para informatizar sistema de votação

Weslley Galzo

 

Sob ataque do presidente Jair Bolsonaro, a urna eletrônica teve, entre os seus inventores, militares das Forças Armadas. A máquina, que neste ano completa 25 anos, enterrou um passado de denúncias de fraudes na votação com cédulas de papel. O Estadão levantou a lista dos inventores do equipamento que se tornou símbolo do mais longevo período democrático. A apuração aponta a participação de oficiais da Aeronáutica, da Marinha e do Exército na criação da tecnologia.

Convocados a pedido do ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Carlos Velloso, engenheiros dos três contingentes militares estiveram diretamente ligados ao desenvolvimento do projeto entre 1995 e 1996. No site do TSE, no entanto, a única menção aos militares é sobre o Centro Técnico Aeroespacial (CTA), entidade de pesquisa das Forças em São José dos Campos (SP).

Capitão de corveta na época em que colaborou com a criação da urna, Luiz Otávio Botelho foi o representante da Marinha no projeto. Responsável por desenvolver o teclado, o monitor e o algoritmo de votação da urna, ele disse que a sua participação no projeto foi "técnica" e nunca foi procurado por superiores para comentar a elaboração do dispositivo.

Em 1998, Botelho assinou um termo de cessão dos direitos autorais ao TSE pela criação da urna. À reportagem, ele defendeu o papel da informatização na melhoria do sistema eleitoral. "Foi uma grande contribuição, não só das Forças Armadas, mas de todos aqueles que participaram do projeto de melhoria do processo eleitoral com o intuito de torná-lo mais aberto." Hoje na reserva, o militar relatou que a preocupação da equipe era acabar com a demora na contagem dos votos. "Foi um grande passo naquele momento, que tinha uma apuração lenta e complexa. O Brasil avançou em relação a outros países. O nosso processo se tornou muito mais limpo, rápido e preciso", disse. "Tivemos a preocupação de torná-la a mais segura possível e minimizar qualquer problema de tentativa de burlar o sistema. Queríamos que ela fosse decente e confiável."

É recorrente entre os participantes do processo que modernizou o sistema eleitoral vincular as Forças a uma colaboração com quadros técnicos, sem maiores intromissões no poder da Justiça Eleitoral. Não é bem assim. Os engenheiros militares contribuíram na execução de um "sonho nacional" por eleições mais limpas desde as tumultuadas disputas entre liberais e conservadores no Império e do voto de cabresto da República Velha. A colaboração de quadros militares de expertise reconhecida, em certa medida, conferiu credibilidade ao dispositivo em desenvolvimento.

 

'Limpas'. No dia 8 deste mês, Bolsonaro subiu o tom e fez novas ameaças ao modelo de votação brasileiro. Os ataques se repetiram no dia seguinte, com insultos ao atual presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, chamado de "imbecil" pelo chefe do Executivo. "Ou fazemos eleições limpas ou não temos eleições", disse Bolsonaro a apoiadores. Ele é defensor da proposta de emenda à Constituição (PEC) em tramitação na Câmara, de autoria da deputada Bia Kicis (PSL-DF), que prevê a impressão do voto computado, a fim de auditá-lo mais uma vez. O atual modelo da urna já possui mecanismos de auditagem.

Os comandantes das Forças, como determina o regramento militar, nunca se posicionaram de forma objetiva sobre o atual modelo eleitoral. Atualmente, as Forças contam com cinco militares de alta patente no primeiro escalão do governo e 6.157 membros em cargos civis da administração pública federal, segundo dados do Tribunal de Contas da União. "Dependendo da forma como o voto impresso for aprovado, seria o recibo para o cacique político reclamar do seu eleitor. Seria a volta do voto de cabresto. O eleitor perderia a independência que o voto secreto lhe deu", afirmou Velloso.

 

Histórico. Era carnaval de 1996 quando o grupo de trabalho formado por técnicos de renomados laboratórios, tribunais eleitorais e das Forças Armadas finalizou o protótipo da urna eletrônica e encaminhou o projeto para o TSE dar início ao processo de licitação que replicou em larga escala o novo modelo de votação brasileiro.

Naquele ano, cerca de 32 milhões de brasileiros digitaram pela primeira vez os números correspondentes às legendas de seus candidatos e escutaram o som da confirmação do voto, que ecoa na seção eleitoral. Na eleição municipal de 2000, todos os eleitores já haviam dado adeus ao voto em cédula de papel. Aos 25 anos, em 2021, a urna eletrônica se consolidou como modelo de votação e levou o Brasil a ser vitrine internacional.

À época em que foi idealizada por Velloso, presidente do TSE no biênio de 1994 a 1996, a urna eletrônica tinha como principal objetivo o combate a fraudes eleitorais, reincidentes no País. "Cheguei à conclusão com o exministro (Sepúlveda) Pertence de que era preciso afastar a mão humana da apuração para evitar erros e a solução seria a informatização", afirmou Velloso.

Um dos últimos casos de fraude ocorreu nas disputas por cargos de deputado estadual e federal nas eleições de 1994 no Rio. O pleito em cédula de papel foi anulado pelo alto número de inconsistências nos votos.

 

'Notáveis'. Em resposta, Velloso convocou intelectuais para que fosse estruturado o processo de informatização do voto. A reunião de nomes como Miguel Reale, Ives Gandra, Cármen Lúcia, entre outros, fez com que os colaboradores fossem chamados de "grupo de notáveis".

Foram eles os responsáveis por oferecer as diretrizes para a comissão técnica elaborar o protótipo da urna e executar os códigos de criptografia. A pedido de Velloso, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) cedeu profissionais (Ézio Salgado, Mauro Hashioka e Paulo Nakaya), assim como o Instituto de Estudos Avançados da Aeronáutica (Oswaldo Catsumi), o Exército (Major Elifas Amaral), a Marinha (Luis Otávio Botelho), a Telebras (Antônio Milan) e TRES (Roberto Siqueira, Gilberto Circunde, Roberto Fonseca, Célio Assumpção, Mário Colaço, Jorge Freitas).

Diante do anúncio de que o Brasil iria informatizar o sistema eleitoral, diversas empresas internacionais passaram a procurar o TSE, mas Velloso defendeu a criação de um produto nacional. "Os preços eram altíssimos e ofereciam urnas eletrônicas do tamanho de uma geladeira. O Brasil precisava ter uma urna que fosse segura e barata, então optamos por adotar o teclado do telefone. Todo mundo sabe telefonar", relembrou o ex-ministro.

 

'Avanço'

"O nosso processo se tornou muito mais limpo, rápido e preciso."

Luiz Otávio Botelho

MILITAR QUE PARTICIPOU DA CRIAÇÃO DA URNA ELETRÔNICA

 

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Só cinco siglas tentaram barrar fundo eleitoral “turbinado"

 

Novo teve apoio de quatro partidos para votar alteração no texto que elevou para R$ 5,7 bi recursos de campanha

 

Camila Turtelli

Uma tentativa de barrar o fundão eleitoral que praticamente triplicou os repasses públicos para campanhas políticas teve o apoio de apenas cinco partidos. Cidadania, PSOL, Podemos e PSL foram os únicos a apoiarem uma mobilização feita pelo Novo para rejeitar o fundo de R$ 5,7 bilhões incluído na votação, anteontem, da Lei de Diretrizes Orçamentária (LDO) no Congresso. Atualmente, 24 partidos políticos têm representação na Câmara dos Deputados.

O Novo apresentou ao plenário um pedido de alteração do texto-principal, o chamado “destaque”, para retirar das regras do Orçamento a previsão de um cálculo para o financiamento de campanha. Com isso, o montante teria de ser definido na Lei Orçamentária Anual (LOA), a ser entregue pelo governo ao Congresso até agosto. Como há necessidade de cortar recursos, isso dificultaria o aumento. O pedido, porém, não conseguiu convencer a maioria das legendas.

A votação desse destaque apresentado pelo Novo foi simbólica, ou seja, sem a contagem nominal de votos. Dessa forma, não é possível saber exatamente como votou cada parlamentar em relação a esse tema, especificamente. A única votação nominal feita refere-se ao texto geral da LDO, que tratava de toda aplicação do dinheiro público no País, e não apenas de repasses para campanha.

As lideranças do Cidadania, PSOL e Podemos se manifestaram em apoio ao pedido do Novo. Cerca de 15 minutos após o encerramento da votação, o PSL também se manifestou favorável. “Os deputados estão me acionando bastante para deixar registrado somente que o partido é contra o fundo eleitoral nos moldes em que está”, disse o deputado general Peternelli (PSLSP), em nome do seu partido.

Na Câmara, Cidadania (8), PSOL (9), Podemos (10), PSL (53) e Novo (8) somam 88 deputados, mas seriam necessários 257 votos para a aprovação do destaque.

“Nós somos contrários ao uso de dinheiro público para financiamento de campanhas. Na nossa opinião, dinheiro público tem que ser utilizado para a saúde, para a segurança e para a educação. Não faz nenhum sentido, na nossa visão, todos os cidadãos brasileiros pagarem essa conta, todos os cidadãos brasileiros financiarem partidos políticos e financiarem campanhas”, disse a deputada Adriana Ventura (Novo-SP), ao defender o destaque no plenário.

Anteontem, o Congresso decidiu turbinar o financiamento das campanhas eleitorais de 2022, com uma mudança nas regras apresentada de última hora. A alteração na construção do Orçamento do próximo ano reserva R$ 5,7 bilhões para as campanhas do ano que vem. Esse montante (sem descontar a inflação) de dinheiro público representa um aumento de 185% em relação ao valor que os partidos obtiveram em 2020 para as disputas municipais – R$ 2 bilhões. É também mais que o triplo do que foi destinado às eleições de 2018, quando foi distribuído R$ 1,8 bilhão.