O Estado de São Paulo, n. 46658, 16/07/2021. Metrópole p.A10

 

Com mais armas e tensão com polícias, homicídios voltam a subir no Brasil

 

Felipe Resk

 

Com mais armas de fogo nas mãos de civis, rearranjos na disputa do crime organizado e cenários de tensão entre policiais e governos estaduais, o Brasil interrompeu uma sequência de dois anos em queda e voltou a registrar aumento de homicídios em 2020, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgados ontem. Ao todo, foram notificados 50.033 assassinatos no País durante o ano passado, marcado pela pandemia. É o equivalente a uma morte a cada dez minutos, ou 4,8% a mais em relação a 2019.

A taxa do Brasil chegou a 23,6 homicídios por 100 mil habitantes em 2020 – resultado pior do que no ano anterior, quando foi registrado o menor índice da década (22,7), mas ainda melhor do que nos demais anos desde 2011. Em 2019, haviam sido 47.742 assassinatos.

Os dados, do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, são compilados com base em registros policiais de cada Estado. Para o índice, o Fórum considera a soma de homicídios dolosos (com intenção de matar), latrocínios (roubo seguido de morte), lesões corporais seguidas de morte e mortes decorrentes de ação policial.

O mau desempenho geral do País foi puxado por homicídios comuns (que subiram 6%, passando de 39,7 mil para 42,1 mil casos) e pela letalidade policial (de 6,3 mil para 6,4 mil, ou 1% maior). Este último índice, inclusive, só registra aumentos desde 2013. Os assassinatos de agentes de segurança também cresceram no período, de 172 para 194 casos, mas representam 0,4% das mortes violentas e impactam menos no resultado final do balanço.

Houve alta das mortes violentas em 16 das 27 unidades federativas, sobretudo no Nordeste. O mais preocupante é o Ceará, com 4,1 mil assassinatos e alta de 75,1% em relação ao ano anterior. O Estado havia sido recordista de queda em 2019.

Diretor-presidente do Fórum, o sociólogo Renato Sérgio de Lima atribui a escalada de violência no Estado à crise com a greve da Polícia Militar ano passado – houve atuação de grupos encapuzados e até toque de recolher. “O Ceará liderava a queda de homicídios nos anos anteriores, mas o grande marco de virada foi o motim da PM”, diz. “Há tensão cada vez maior em torno das leis orgânicas e da politização das polícias.”

O Fórum destaca que o episódio, além de afetar políticas de segurança, favoreceu facções.

“Esse processo de desarranjo político das instituições cearenses deu margem para os planos de expansão do Comando Vermelho local, que iniciou ofensiva sobre os territórios dos Guardiões do Estado – seu maior rival local, e a violência, que estava contida, voltou”, diz o texto.

Estados que também tiveram atrito entre forças de segurança e governos locais aparecem na sequência de maiores altas: proporcionalmente, Maranhão (30,2%), Paraíba (23,1%), Piauí (20,1%) e Alagoas (13,8%). Para analistas, fatores como desemprego e saúde mental na quarentena também podem ter peso.

Para o Fórum, outra explicação significativa para a subida das mortes é o aumento de armas de fogo no País, bandeira do governo Jair Bolsonaro. Hoje há 2.077.126 armas particulares. Só em 2020 o incremento foi de 186.071 novas armas registradas na Polícia Federal, 97,1% mais em relação ao ano anterior, tendo duplicado o número de armas longas, como carabinas, espingardas e fuzis. Em paralelo, o Brasil viu crescer a presença das armas de fogo nos assassinatos registrados. Em 2019, elas foram usadas em 72,5% dos homicídios; no ano passado, 78%.

“Já é possível perceber a correlação entre o aumento de armas de fogo e o números de assassinatos. Para o País inteiro, a política de liberalização começa a ter efeito nas ruas, embora essa não seja a única causa”, afirma Lima. Na visão de especialistas, políticas para redução de crimes contra a vida passariam por aperfeiçoar o controle e rastreabilidade das armas.

“É importante dizer que o crescimento de homicídios é multicausal, envolve uma série da fatores”, diz Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum. “Por outro lado, não dá para ignorar um conjunto de evidências científicas já consolidadas de que o aumento de armas de fogo em circulação impacta nos assassinatos”, diz ela, que prevê novas altas nos próximos anos.

Entre os indicadores de mortes violentas, caíram os latrocínios (-9,9%) e lesões corporais seguidas de morte (-11,3%). Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança não comentou.

 

São Paulo. Com a menor taxa de homicídios do País, São Paulo teve mais assassinatos (1,2%) em 2020. Em janeiro, o governo paulista avaliou que o aumento atípico estaria ligado a conflitos interpessoais – brigas ou desavenças entre conhecidos–, o que se agravaria no confinamento. Outra hipótese é que o cerco maior contra o Primeiro Comando da Capital (PCC) pode ter gerado disputas violentas pela chefia da facção, afirma Lima. E isso pode influenciar o País todo. “Como efeito do enfraquecimento do PCC, houve reconfiguração do crime, abrindo espaço para outras facções, principalmente no Nordeste.”

Somam-se a isso a falta de policiamento causada por reflexo da pandemia. Escutas feitas pelo Fórum com mais de 6,6 mil agentes apontam que 29,5% se afastaram em algum momento após testar positivo para covid.

Em nota, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, da gestão João Doria (PSDB), disse que “as oscilações” nos registros criminais têm sido analisadas. Uma das estratégias para retomar a queda de índices, acrescentou, é intensificar operações contra o crime organizado e o tráfico de drogas.

 

 Guerra de facções

“Como efeito do enfraquecimento do PCC, houve reconfiguração do crime, abrindo espaço para outras facções, principalmente no Nordeste.”

Renato Sérgio de Lima

PRESIDENTE DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA

 

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No Ceará, mãe chora 'menino que foi pro céu'

 

 

Em 1º de julho de 2020, a agricultora Leidiane Rodrigues, de 32 anos, recebeu ligação de madrugada, dizendo que o filho Mizael, de 13 anos, havia sido baleado. Ao chegar no hospital, a enfermeira já deu a notícia: "Seu menino já foi para o céu".

Mizael foi uma das 4.039 vítimas de homicídio no Ceará em 2020. Com isso, a taxa de assassinatos por 100 mil habitantes chegou a 45,2, a mais alta do País. O crescimento no número de casos entre 2019 e o ano passado foi de 75%. O caso de Mizael se tornou emblemático no Estado porque o jovem foi morto por policiais enquanto dormia na casa da tia em Chorozinho, a 68 quilômetros de Fortaleza. A versão da polícia é de que os agentes procuravam um adolescente com histórico de atos infracionais, que estaria armado no momento do crime. "Quando eu estava doente era ele quem cuidava de mim. Agora no dia 1º, fez um ano que estou sem meu filho, ainda dói muito", conta Leidiane.

Sobre a alta de mortes, a Secretaria de Segurança do Ceará, da gestão Camilo Santana (PT), disse que o motim de PMs em fevereiro de 2020 "interrompeu sequência de mais de 30 meses seguidos de redução" nas mortes em crimes violentos". Para a pasta, também pesou a pandemia, pois foi preciso afastar profissionais com sintomas.

 

Perfil. Segundo o Anuário de Segurança Pública, 5.855 adolescentes de 12 a 19 anos foram vítimas de mortes violentas e houve registro de 170 assassinatos de crianças de até 4 anos. No total, 54,3% dos mortos estavam na faixa até 29 anos.

Homens representaram 91,3% das vítimas de assassinato em 2020. Por sua vez, os negros correspondem a 76,2% das pessoas assassinadas. "Todos os bons programas de prevenção que existem no mundo pensam como lidar com o público mais vulnerável", diz Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum. "Para mudar o cenário, o Brasil precisa compreender a sua realidade e pensar políticas antirracistas e de prevenção da violência em relação à juventude", defende. / F.R. e HELOÍSA VASCONCELOS, ESPECIAL PARA O ESTADÃO

 

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Mais acesso às armas joga contra a segurança pública

 

ANÁLISE: Cristina Neme, Leonardo Carvalho e Natália Pollachi

 

O Anuário revela que o porcentual de mortes por armas de fogo no Brasil saltou de 72,5% em 2019 para 78% em 2020. Considerando que a arma de fogo é o principal meio empregado nos assassinatos no País, o crescimento verificado em 2020 soa como alerta, especialmente por ter sido no ano da pandemia.

Em contexto de maior isolamento social, esperaríamos ter redução dos conflitos violentos em vias públicas, onde ocorre, historicamente, a maior parte dos homicídios. Uma das principais hipóteses para essa alta é o aumento das armas legais em circulação, tornada prioridade na agenda federal.

Já são mais de 30 decretos e portarias do governo que flexibilizaram as regras para compra de armas e de munições. Muitos deles foram revogados ou estão sob disputa judicial gerando um caos normativo. Entre as mudanças em vigor estão a facilitação da justificativa de necessidade e o aumento da quantidade e da potência das armas. Hoje, um atirador recém-cadastrado em clube de tiro pode adquirir legalmente 60 armas, desde revólveres e pistolas até fuzis.

Um maior número de armas em circulação pode impulsionar a violência de diferentes formas. Seja por esses arsenais atraírem o crime organizado e serem facilmente roubados, como em um caso recente, em São Paulo, em que um colecionador e sua companheira foram rendidos.

A flexibilização é um tiro no pé da segurança pública e favorece organizações criminosas e milicianas que veem no mercado doméstico armas mais acessíveis. Outra dinâmica frequente é a presença da arma agravar conflitos interpessoais, como em agressões contra mulheres e tentativas de reação a roubos que levam a latrocínios e tiroteios.

Também chama atenção a importante contribuição das mortes decorrentes de intervenções policiais. A letalidade policial representou 12,8% das mortes violentas intencionais ocorridas no País em 2020, proporção que chega a 30% em alguns Estados.

É falacioso o argumento de que flexibilizar o acesso a armas é uma forma de prover segurança. Também não é verdadeiro que seja demanda popular. O Anuário revela que só 10,4% dos policiais aprovam a liberação ampla do porte de armas de fogo. Essa rejeição, vinda de quem vive na linha de frente dos confrontos, é muito significativa.

Há formas efetivas de evitar mortes e crimes a partir do investimento em políticas integradas de prevenção e na eficiência policial, mas que exigem atitudes que vão muito além de tirar fotos com armas nas mãos.

SÃO, RESPECTIVAMENTE, COORDENADORA DE PROJETOS, COORDENADOR DE PROJETOS E GERENTE DE PROJETOS DO INSTITUTO SOU DA PAZ