O Estado de S. Paulo, n. 46645, 03/07/2021. Internacional, p. A12

Dados defasados impedem Venezuela de receber vacinas do sistema Covax

Fernanda Simas


Desde dezembro de 2020, o Covax, iniciativa global para garantir acesso rápido e equitativo a vacinas, acertou o envio de 1,3 bilhão de doses de imunizantes a 92 países de baixa e média rendas. A Venezuela, porém, ficou de fora. O motivo? O governo de Nicolás Maduro não atualiza os dados econômicos desde 2014 e, considerando as cifras oficiais da época, o país é considerado capaz de comprar imunizantes.

A Venezuela poderia estar hoje com 20% de sua população vacinada, mas convive com um surto de covid e com o atraso na vacinação. Com quase 30 milhões de habitantes, o país registra 270 mil casos e 3.101 mortes, de acordo com dados oficiais. Segundo a Organização Panamericana da Saúde (Opas), 1,2 milhão de pessoas receberam a primeira dose na Venezuela e apenas 224 mil, a segunda.

Com PIB per capita de cerca de US$ 1.500, segundo organizações que monitoram a situação econômica local, a Venezuela não está na lista dos países habilitados a receber vacinas porque, em 2014, os dados mostravam uma renda per capita de US$ 13 mil.

“Desde o governo Chávez, os dados eram modificados para esconder o aumento da pobreza. No governo Maduro, tudo piorou. Não apenas na Saúde, mas em todas as áreas, deixaram de divulgar dados. A intenção é esconder a decadência econômica e os precursores dessa grande crise humanitária e, com isso, poder seguir negociando os níveis de endividamento”, explica María Alejandra Aristeguieta, analista de temas internacionais venezuelana e ex-embaixadora designada por Juan Guaidó para a Suíça.

Outros países da região, como Bolívia, El Salvador, Honduras e Nicarágua, fazem parte da lista de economias de baixa ou média rendas e já receberam, juntos, mais de 2,8 milhões de doses de diferentes imunizantes, segundo dados do Covax.

Dos 190 países participantes do consórcio, 92 entram na classificação de economias de baixa e média rendas elegíveis para o Compromisso Antecipado de Mercado (AMC), ou seja, recebem os imunizantes por meio de financiamento. Os outros 98 países, considerados de alta renda, precisam comprar as vacinas do sistema.

A divisão é feita com base em dados da renda bruta per capita do Banco Mundial. Mas, nos últimos sete anos, o PIB da Venezuela diminuiu, a produção de petróleo está nos níveis mais baixos em décadas e a população enfrenta um grave crise econômica, com escassez de alimentos e remédios.

A compra de vacinas do sistema Covax seria, então, o outro caminho natural para a Venezuela para imunizar sua população. O governo Maduro assinou um acordo para a compra de 11,3 milhões de doses e teria de pagar US$ 119,9 milhões, sendo que 15% desse valor deveria ser pago de forma antecipada para garantir a reserva das vacinas. Mas Caracas não pagou a tempo.

“Seja russa, chinesa ou cubana, acho que as pessoas devem ser vacinadas”, disse Andrés Febres, comerciante de 25 anos, que espera em silêncio as reações adversas à inoculação com a vacina cubana Abdala, sentado em uma arquibancada ao lado de 30 pessoas.

A Venezuela começou a vacinar sua população com a vacina desenvolvida em Cuba, apesar de ainda não haver aprovação da OMS. O laboratório cubano que a desenvolveu fala em uma eficácia de 92%, mas os médicos venezuelanos estão céticos.

Depois de algumas negociações, Caracas decidiu, em abril, que escolheria a vacina que queria e pagaria o valor necessário para receber o imunizante. Um documento do Covax mostra que a Aliança Global para as Vacinas (Gavi) recebeu US$ 109,9 milhões da Venezuela em 12 transações, mas quatro pagamentos haviam sido bloqueados.

Por isso, o país não recebeu ainda os 5 milhões de doses da Janssen, primeira vacina de dose única aprovada pela OMS. Maduro afirma que as sanções impostas pelos EUA impediram a liberação do dinheiro. No entanto, o governo de Joe Biden emitiu uma licença, no dia 16, para excluir das sanções questões relacionadas à covid.

“É importante entender que a emergência humanitária pela qual passa a Venezuela não se deve às sanções dos EUA. No atual contexto, isso é ainda menos viável porque as licenças dos EUA permitem muitas ações comerciais, por exemplo”, explica Nicole Hernandez, responsável pela área de investigação da ONG Centro de Justicia y Paz (Cepaz).

Até 14 de junho, a Venezuela recebeu 3,23 milhões de vacinas após acordos com Rússia e China. O governo diz que quer imunizar 22 milhões de pessoas ainda neste ano. Pessoas com mais de 60 anos recebem a russa Sputnik-v, mas não foi possível para Víctor Ilarraza, de 78 anos, como contou à AFP. “Eles me chamaram para tomar a vacina russa, mas fui várias vezes e não tinha vacina ou senha, e tinha de chegar às 3 horas da manhã para entrar na fila.”

“A Venezuela está em último lugar na fila (do Covax) e isso afeta a população venezuelana, porque eles (integrantes do governo) já estão todos vacinados”, afirma María Alejandra. / Com AFP

Crise sanitária

“A Venezuela está em último lugar na fila (do Covax) e isso afeta a população venezuelana, porque eles (integrantes do governo) já estão todos vacinados”

 María Alejandra Aristeguieta

Ex-Embaixadora designada por Juan Guaidó para a Suíça