O Estado de São Paulo, n. 46652, 10/07/2021. Política p.A4

 

Poderes reagem a ameaça de Bolsonaro às eleições

 

 

As crescentes ameaças do presidente Jair Bolsonaro à realização de eleições no País em 2022, caso o voto impresso não seja aprovado, provocaram ontem fortes reações no Congresso e no Judiciário. Depois que Bolsonaro subiu o tom e chamou o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luis Roberto Barroso, de “imbecil” e “idiota”, integrantes da cúpula dos Poderes fizeram questão de condenar publicamente a atitude, considerada golpista, e só aventada por quem é “inimigo da Nação”.

Alvo dos xingamentos, Barroso divulgou uma nota na qual destaca que a tentativa de impedir as eleições configura “crime de responsabilidade”, primeiro passo para a abertura de um processo de impeachment contra o chefe do Executivo. “A realização de eleições, na data prevista na Constituição, é pressuposto do regime democrático. Qualquer atuação no sentido de impedir a sua ocorrência viola princípios constitucionais e configura crime de responsabilidade”, diz o comunicado.

Ao Estadão, o presidente do TSE afirmou que pode assegurar a disputa de 2022. “Eu não paro para bater boca. Cumpro o meu papel pelo bem do Brasil. Mas eleição vai haver, eu garanto”, afirmou Barroso, que também integra o Supremo Tribunal Federal (STF). Mais tarde, o ministro foi às redes sociais. “Dicas da semana – Um livro: A ditadura escancarada, Elio Gaspari. Um pensamento: “Quando um homem de bem responde um insulto com outro insulto, ele permite que o mal vença. Não é preciso responder. O mal consome a si mesmo. Uma música: Cálice”, escreveu. O ministro do STF Alexandre de Moraes, que estará à frente do TSE no pleito de 2022, foi na mesma linha ao dizer que atos contra a democracia configuram “crimes comum e de responsabilidade”.

A escalada de críticas e acusações de Bolsonaro ao sistema de urna eletrônica ocorre no pior momento do governo, que enfrenta queda de popularidade e desgaste diante das denúncias de corrupção na CPI da Covid e do descaso na condução da pandemia. Além disso, aumentam as manifestações de rua pedindo o impeachment de Bolsonaro e crescem as intenções de voto no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu maior adversário.

Acuado, o presidente atribui a Barroso as articulações políticas para barrar a aprovação da proposta que institui o voto impresso no Brasil. Onze partidos já se posicionaram contra a essa bandeira do governo, que será votada na próxima quinta-feira, na Câmara.

“A fraude está no TSE, para não ter dúvida”, disse o presidente, mais uma vez sem apresentar provas, em conversa com apoiadores, na entrada do Palácio da Alvorada. “Não tenho medo de eleições. Entrego a faixa para quem ganhar, no voto auditável e confiável. Mas dessa forma (no modelo atual), corremos o risco de não ter eleição no ano que vem”, insistiu. “Já está certo quem vai ser presidente ano que vem. A gente vai deixar entregar isso?”, perguntou, um dia depois de fazer ameaças. “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”.

Os ataques de Bolsonaro à democracia isolam cada vez mais o governo, que tem perdido apoio até mesmo de aliados no Congresso. “Mas meu couro é grosso”, amenizou ele no fim da tarde, em Caxias do Sul (RS). Eleito presidente do Senado com o aval do Palácio do Planalto, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) se distanciou de Bolsonaro e afirmou que não aceitará retrocessos ao estado democrático de direito. Foi também uma resposta às últimas manifestações das Forças Armadas.

“Todo aquele que pretender algum retrocesso ao estado democrático de direito, esteja certo, será apontado pelo povo brasileiro e pela história como inimigo da Nação”, afirmou Pacheco. “As eleições são inegociáveis”.

Cortejado para se lançar candidato ao Planalto por outro partido, o PSD, apresentando-se como “terceira via”, o presidente do Senado já havia tentado dissipar tensões na véspera, quando conversou com o ministro da Defesa, Walter Braga Netto, e com o comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira. O movimento ocorreu após uma nota em que os militares repudiavam declarações do presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), para quem as investigações sobre a compra de vacinas mostram o “lado podre” das Forças Armadas.

Pacheco se surpreendeu, porém, com o tom das declarações dadas pelo comandante da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Junior, que, em entrevista ao jornal O Globo, disse que a nota das Forças Armadas foi apenas “um alerta”. “Homem armado não ameaça”, disse Baptista Junior.

Líder do Centrão e aliado de Bolsonaro, o presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-al), preferiu o silêncio, mas, nos bastidores disse que a situação é “preocupante” e trabalha para conter a crise. O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), afirmou, porém, que o chefe do Executivo está “afrontando” a Constituição. “Não ter eleição em 2022 significa fechar o Congresso em 1.º de fevereiro de 2023, quando acabam nossos mandatos”, disse Ramos ao Estadão. / DANIEL WETERMAN, WESLLEY GALZO, ANNE WARTH, CAMILA TURTELLI e GUSTAVO

 

Eleições

Qualquer atuação para impedir a sua ocorrência (das eleições) viola princípios constitucionais e configura crime de responsabilidade”

LUIS ROBERTO BARROSO, PRESIDENTE DO TSE

 

Quem pretender retrocesso ao estado democrático de direito será apontado pelo povo e pela história como inimigo da Nação”

RODRIGO PACHECO, PRESIDENTE DO SENADO

 

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Instituições colocam impeachment no radar

 

ANÁLISE: Marcelo de Moraes

 

Ataques do presidente Jair Bolsonaro à democracia não são exatamente uma novidade, desde que ele passou a ocupar o Palácio do Planalto. Mas, até mesmo para os padrões do presidente, a ameaça de não haver eleições em 2022 e os ataques feitos ao presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Luís Roberto Barroso ultrapassaram o nível de bravata e foram considerados preocupantes pelos principais líderes dos Poderes Legislativo e Judiciário. Especialmente, por terem vindo ao mesmo tempo em que as Forças Armadas emitiram uma nota criticando o presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM). Antes que as ameaças à democracia se tornassem incontornáveis, as instituições colocaram a carta do impeachment na mesa de jogo.

Quando Barroso solta uma nota oficial dizendo, com todas as letras, que qualquer tentativa de impedir que as próximas eleições ocorram “viola princípios constitucionais e configura crime de responsabilidade”, ele está sendo claríssimo. Porque crime de responsabilidade é motivo para abertura de processo de impeachment do presidente. O mesmo termo foi repetido por outro ministro do STF, Alexandre de Moraes, que comandará o TSE em 2022, justamente no período eleitoral. Moraes reforçou o recado contra Bolsonaro, falando que “os brasileiros podem confiar nas instituições, na certeza de que, soberanamente, escolherão seus dirigentes nas eleições de 2022, com liberdade e sigilo do voto. Não serão admitidos atos contra a Democracia e o Estado de Direito, por configurar crimes comum e de responsabilidade”. Ou seja, para dois ministros do STF, o crime de responsabilidade se evidencia com a ameaça feita às eleições.

Por mais que ainda tenha poder e orçamento para ainda manter o apoio do Centrão para ajudá-lo dentro do Congresso, Bolsonaro sabe que os ventos da política podem mudar rapidamente essa situação e afetar sua blindagem contra um eventual pedido de impeachment. Se fosse só a pressão interna no Congresso, o presidente teria uma margem mais confortável para manobrar. Com Judiciário e Legislativo atuando e, em conjunto, o jogo é muito mais complicado – o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), também condenou os ataques feitos pelo presidente e defendeu os princípios democráticos. Assim, o sistema de freios e contrapesos entrou em ação para conter o presidente da República em mais um flerte com uma virada de mesa política colocando em risco o processo democrático do País. Num momento em que acabou de ser apresentado um “superpedido de impeachment” na Câmara, Bolsonaro sabe que o risco de perder o mandato pode se tornar realidade se fizer o movimento errado.