O Globo, n. 32748, 05/04/2023. Política, p. 8

De arma a massagem, os presentes fora do catálogo

Patrik Camporez
Dimitrius Dantas


Alvo de suspeitas por se apropriar de kits de joias que entraram no país de forma ilegal, o ex-presidente Jair Bolsonaro ficou com outros 94 presentes recebidos ao longo do mandato antes mesmo de os itens serem avaliados pela equipe do patrimônio histórico do Palácio do Planalto. Segundo documentos obtidos pelo GLOBO, quando decidia ficar com as peças, o ex-presidente usava o expediente de pedir à sua equipe que elas não fossem catalogadas, o que possibilitava apenas um registro genérico. Na lista, estão objetos como canetas de luxo, pedras raras, um assento massageador e até uma espingarda semiautomática. Hoje, o ex-presidente prestará depoimento à Polícia Federal sobre as joias recebidas do governo da Arábia Saudita.

Por ordem do Tribunal de Conta da União, Bolsonaro entregou ontem em uma agência da Caixa o estojo de joias avaliado em R$ 500 mil que estava com ele. A informação foi publicada por Fabio Wajngarten, ex-secretário de comunicação do governo Bolsonaro, que tem assessorado o ex-presidente. Desde que o caso das joias sauditas foi revelado pelo jornal Estado de S. Paulo, Bolsonaro nega qualquer ilegalidade e afirma ter recebido presentes milionários por conta da relação de amizade que construiu com os árabes

No inventário com mais de nove mil presentes dados a Bolsonaro, obtido pela reportagem, consta a relação dos itens que, por ordem do então presidente, não passaram pelo procedimento padrão de análise. Nestes casos, ao relatar o recebimento dos itens, os funcionários do Palácio do Planalto escreviam apenas que “não foi possível detalhar a descrição da peça, uma vez que a mesma foi entregue diretamente ao presidente, a pedido do mesmo, sem passar por este GADH”. O GADH é o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica, que cuida da avaliação e documentação de tudo o que presidente da República recebe de presente. Questionada sobre a prática, a defesa do ex-presidente não respondeu. Em ocasiões anteriores, negou qualquer irregularidade nas peças incorporadas ao acervo pessoal de Bolsonaro.

Canetas de R$ 6 mil

Dentre os itens com essa descrição conta uma espingarda da marca Typhoon Defense, semiautomática, de calibre 12. Segundo sites especializados, o preço da arma gira em torno de US$ 500 a US$ 700 (R$ 2.531 a R$ 3.544, no câmbio atual). Além dela, Bolsonaro recebeu dois carregadores, uma bandoleira e um kit de manutenção. No resumo do item, há a mensagem que “não foi possível detalhar a descrição, uma vez que o presente ficou sob a guarda/posse do Presidente da República, ao ser recebido, conforme descrito no formulário de encaminhamento de presentes”. Bolsonaro também ficou com uma caixa de 25 unidades de cartuchos de munição.

O ex-presidente adotou o mesmo procedimento ao levar para casa um assento massageador “Shiatsu PRO”, que custa cerca de R$ 1 mil.

Bolsonaro incorporou ainda ao seu patrimônio privado canetas que custam até R$ 6 mil cada; caso de uma Mont Blanc edição especial “Walt Disney“.

O ex-presidente também ficou com dois troféus, um deles na cor dourada e com uma amostra de pedras ametistas.

Dentre os itens consta até um busto de Garrincha trajando camisa do Botafogo.

Outra escultura apropriada pelo ex-presidente é uma representação do Arcanjo Miguel, com capa vermelha e armadura, uma espada numa das mãos, e balança na outra, e um dos pés sobre a representação do demônio. “Apresenta base em tons de marrom, com ornatos em dourado”, cita o inventário, sem dizer de que metal a obra é feita nem seu valor.

O ex-presidente ganhou uma segunda escultura de metal, mas os técnicos também não conseguiram avaliar de qual material é feita. No inventário, escrevem apenas que tem formato de espada, com punho alongado, fixado em base circular. Outro objeto de metal é composto por três cabeças fixadas por hastes metálicas em base de mármore; cada uma delas apresenta representação de uma mão sobrepondo, respectivamente, a orelha, a boca e os olhos.

Ao listar um quadro recebido pelo ex-mandatário, os técnicos do Planalto descreveram apenas que o objeto era “trabalhado em tons de marrom” e que, “sobre a moldura, área inferior, contém uma peça retangular de metal prateado com inscrição gravada”. Nesses casos, a equipe do patrimônio não pôde avaliar, por exemplo, se os objetos eram de ouro ou prata, nem se tinham valor material ou histórico.