O Globo, n. 32774, 01/05/2023. Opinião, p. 2

Usar Bolsonaro de biombo é prova de que há algo a esconder

Ciro Nogueira


Desde que subiu a rampa do Planalto, o governo Lula não desceu do palanque eleitoral. Dia sim, dia também, em vez de falar sobre o presente ou o futuro, sobre criação de emprego e crescimento econômico, de propostas concretas para que o país decole, o presidente e seus comissários só falam um nome: Bolsonaro. Em vez de encontrar soluções, o governo, paralisado, prefere encontrar culpados ou “o culpado”. Agora que a CPMI do 8 de Janeiro se torna realidade, é preciso que o Brasil se olhe no espelho, e não no retrovisor. Temos de investigar a fundo o que aconteceu e o que levou à invasão do coração do poder e da democracia.

Se o governo e seus líderes desviarem o foco da responsabilidade daqueles que estavam na cadeia de comando, sobretudo no topo, para atacar o ex-presidente, demonstrarão ser uma manobra de encobrimento de fatos graves e uma forma de dispersar a atenção, para que a verdade não venha à tona. Ficará claro que, para preencher o vazio do atual governo, seu único esguicho de reação é balbuciar o bordão “Bolsonaro”. Ficará evidente a farsa se a CPMI seguir esse caminho. Terminará em pizza. Sabor molusco.

Não há dúvida de que os perpetradores comprovadamente de atos de depredação merecem punição, na forma da lei. O colapso das forças de contenção e repressão à violência deve ser minuciosamente esquadrinhado. Por que o ministro da Justiça não convocou, com as atribuições que lhe são conferidas expressamente, a Guarda Nacional para proteger o coração do poder da nação? Descarregar toda a responsabilidade sobre a Polícia Militar do Distrito Federal — cuja parcela de falha não pode ser eximida — é em nada convincente. O governo tem seus próprios serviços de informação e, se não agiu, a questão é: por quê?

O Palácio não foi meramente tomado pela turba. Foi-lhe facultado acesso, com tapete vermelho. Dos mil profissionais que protegem a sede do Executivo, apenas 18, repito, 18, estavam de prontidão. Ainda assim, as imagens que vieram a público mostram uma atitude que pode ser definida como tudo, menos resistência e repressão. Havia quase uma camaradagem entre invasores e invadidos. E que não se venha dizer que eram “bolsonaristas”. Quem confraternizava com os invasores era um general da mais absoluta confiança do presidente, alguém que teve todo o período de transição e uma semana de governo para olhar com lupa e selecionar a dedo quem poderia fazer parte da segurança presidencial. Ali estavam servidores selecionados. Se não agiram, foi porque cumpriram ordens dentro de uma cadeia hierárquica. De quem? Por quê?

A CPMI terá marcos definidores, e tolice será para o governo pensar que tratorar propostas esclarecedoras se traduzirá em ganho político. Pelo contrário. O Brasil tem o direito de saber o que falaram, com quem falaram e o que disseram o ministro da Justiça, seus principais auxiliares, o comando da segurança, o ministro do GSI, autoridades centrais no núcleo do poder. Se os conteúdos dessas conversas tiverem sido eliminados ou se não for facultado o acesso a elas por uma maioria governista, o governo pode até “ganhar” dentro da comissão, mas perderá fora, na sociedade. Quem não tem nada a esconder não teme. O Brasil sabe que, se o governo quiser atacar Bolsonaro, seria apenas uma confissão de culpa de que há algo que não se quer revelar.

O governo participou, pela total leniência, para que os vândalos tivessem porteira aberta? Havia um cálculo político de tirar proveito do vandalismo para se colocar como vítima e emparedar segmentos como culpados? A única maneira de o governo e seus aliados provarem que isso nunca aconteceu é não criarem barreira contra a transparência em relação aos principais atores com poder naqueles dias. Fora disso, a CPMI será um biombo, e o Brasil enxergará.