O Globo, n. 32775, 02/05/2023. Economia, p. 11

Ajuda ao vizinho

Alice Cravo
Eliane Oliveira


O presidente Luiz Inácio da Silva vai propor ao presidente da Argentina, Alberto Fernández, financiamento às empresas brasileiras que vendem para o país. A proposta deverá ser apresentada ao argentino durante visita de Fernández ao Brasil hoje, quando se reunirá com Lula e a equipe econômica, no fim da tarde, no Palácio da Alvorada. A informação foi dada pelo secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, em entrevista à GloboNews.

— A gente vem discutindo há algum tempo o que a gente chama de crédito para exportação. Na verdade, é um financiamento às empresas brasileiras que vendem para a Argentina, e são essas empresas (argentinas) que importam serviços e mercadorias do Brasil — afirmou o secretário.

Fernández viajará ao Brasil em meio à deterioração da situação econômica e financeira da Argentina. O país enfrenta escassez de dólares, inflação de mais de 100% ao ano e a pior seca desde 1929. A agenda vai tratar de mecanismos de financiamento para as exportações brasileiras para Argentina, dada a escassez de divisas no país.

De acordo com Galípolo, cerca de 210 empresas brasileiras comercializam com a Argentina. O país é considerado um parceiro comercial importante, segundo o secretário, principalmente em produtos industriais, que têm maior valor agregado.

— Nos últimos cinco anos, por ausência de mecanismos do Brasil para financiamento das exportações brasileiras e importações argentinas, perdemos aproximadamente US$ 6 bilhões de espaço na balança comercial com a Argentina para a China, que vem viabilizando mecanismos de financiamento em alternativas em meios de pagamento —afirmou.

No ano passado, as exportações brasileiras para o vizinho somaram US$ 15,3 bilhões. Uma década antes, elas totalizavam quase US$ 20 bilhões, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio Exterior e Serviços.

Papel de liderança

A tendência é que o BNDES seja o financiador das exportações para aquele país. De acordo com um interlocutor envolvido nas discussões, o banco precisaria de aval do Ministério da Fazenda, que colocaria em uso o Fundo Garantidor de Exportação (FGE).

No financiamento do BNDES a outro país, o banco repassa o dinheiro para a empresa brasileira que vai vender seu produto ou serviço. Se o governo argentino não pagar o empréstimo, o BNDES não fica no prejuízo, pois o FGE cobre o valor devido.

Como a Argentina não dispõe de dólares para importar produtos e não conta com crédito junto a outros organismos multilaterais, uma linha de financiamento salvaria os vizinhos, que precisam comprar, principalmente, insumos industriais. Para o Brasil, esse apoio reforçaria seu papel de liderança na região e fortaleceria as relações com Buenos Aires, que ficaram bastante afetadas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

O consultor Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior, lembra que o BNDES parou de fazer financiamentos externos no governo do ex-presidente Michel Temer, por causa da Operação Lava-Jato. Porém, há um projeto de retomada desses empréstimos que, em sua opinião, são importantes para as exportações brasileiras.

— A Argentina não tem histórico de default (calote) com o Brasil. Sempre pagou tudo o que devia. E, além das exportações de bens, o Brasil tem projetos relevantes com os argentinos, como a construção de um gasoduto —afirmou.

Para ele, o importante é evitar riscos passados, como o que aconteceu com a Venezuela, que não pagou ainda tudo o que deve de obras como o metrô de Caracas.

Barral não considera que uma linha de financiamento para a Argentina significa socorrer o país. Isso porque, segundo ele, uma linha de crédito brasileira deve ser inferior ao que a China tem liberado para os argentinos, além de organismos internacionais.

— A Argentina não tem crédito com bancos privados, mas conta com a ajuda da China e da Comunidade Andina de Fomento, por exemplo —disse.

Galípolo ressaltou que o BNDES tem um papel “essencial no processo” pela sua experiência em financiamento de exportações. O secretário afirmou também que todos os bancos multilaterais têm dialogado sobre a questão da Argentina, e destacou o papel do Banco do Brics.

— O BNDES tem muita experiência nisso, de financiamento de exportações. O papel do BNDES é essencial nesse processo, mas obviamente tem toda uma governança interna do BNDES do ponto de vista de garantias, exigências que precisam ser cumpridas, e o BNDES vem apoiando e participando dessas discussões —disse.

As dificuldades financeiras da Argentina —que tem suas reservas líquidas no Banco Central praticamente zeradas — foram discutidas por uma missão enviada pelo governo Fernández a Brasília no início de março, à qual se uniu o embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli, agora pré-candidato à Presidência do país. Os enviados do governo argentino solicitaram a ajuda do Brasil para financiar o pagamento das exportações brasileiras para o mercado argentino.

Conversabilidade

Nos primeiros dois meses do ano, as exportações brasileiras para a Argentina aumentaram quase 20% em comparação ao mesmo período do ano passado. A tendência preocupa a Casa Rosada, num cenário de dramática escassez de divisas para financiar as importações do país. Há muito tempo, os exportadores brasileiros se queixam pela demora em receber os pagamentos por suas vendas para a Argentina — em muitos casos de até 180 dias ou mais —, e atualmente a situação atingiu níveis muito complicados para ambos os lados.

— Essas linhas de exportação pagam diretamente às empresas brasileiras. O risco e a complexidade da situação são menores que um risco tradicional de financiamento, quando você financia uma empresa e não sabe se a empresa vai conseguir vender ou não, porque a demanda pelos produtos dela existe — afirmou Galípolo.

O secretário pontuou ainda que o problema para o modelo seria a conversibilidade, ou seja, se os pesos resultantes das vendas seriam suficientes para pagar a dívida uma vez que forem convertidos para real:

— O problema que existe é a conversibilidade da moeda. Ele vai vender em pesos na Argentina, e quando tiver de pagar esse financiamento do lado de cá o que vai acontecer é que tem um problema de conversibilidade. Será que o volume de pesos que foi auferido com a venda, ao converter para real, vai ser suficiente para pagar a dívida? Toda a complexidade da estrutura é como eu consigo resolver o problema da conversibilidade num comércio que é realizado hoje por uma moeda de um terceiro país não participante desse comércio.