O Globo, n. 32776, 03/05/2023. Opinião, p. 2

Linha de crédito para Argentina desperta ceticismo



O presidente argentino, Alberto Fernández, saiu ontem de Brasília com um bom motivo para demonstrar apreço pelo parceiro Luiz Inácio Lula da Silva. Em meio a abraços e cumprimentos calorosos, entrou na pauta o financiamento do BNDES ao comércio entre os dois países, por meio de um mecanismo que evite pagamento em dólar. Para a Argentina, a linha de crédito aliviaria a pressão num momento de inflação em disparada e escassez de divisas. Para o Brasil, é difícil enxergar as vantagens — e fácil vislumbrar o risco de calote.

É verdade que não faltam motivos para nos preocuparmos com a situação do país vizinho, terceiro maior mercado para exportações brasileiras. No ano passado, as vendas somaram US$ 15,3 bilhões, grande parte produtos industrializados (um diferencial na comparação com outros países para os quais exportamos produtos primários). Várias empresas, em especial multinacionais, mantêm produção integrada nos dois países de olho no Mercosul. Diferentes componentes cruzam a fronteira nos dois sentidos. Por isso qualquer solavanco na Argentina afeta o Brasil.

Há, porém, várias dúvidas sobre o plano anunciado ontem. A mais óbvia é se Lula teria aceitado a ideia do crédito camarada caso o presidente argentino fosse de centro ou de direita. Nos governos petistas anteriores, a ideologia falou mais alto, e o resultado foi desastroso. Desde 1998, o BNDES aportou US$ 10,4 bilhões numa linha de apoio à exportação de serviços de engenharia. Os dois países que mais deram calote foram Venezuela (US$ 682 milhões) e Cuba (US$ 238 milhões). Juntos, ainda devem US$ 52 milhões. Justamente aqueles cujos empréstimos foram ditados por critérios mais ideológicos que econômicos.

Outra dúvida diz justamente respeito à sensatez financeira da iniciativa. A inflação anual argentina supera 100%, e o peso está em franco derretimento diante das demais moedas, inclusive o real. O contrato de financiamento da exportação é fechado num momento, mas a venda na Argentina ocorre depois. Com a inflação em disparada, é certo que haverá descasamento entre os valores. O pagamento ao exportador brasileiro estará garantido, mas o BNDES não tem como saber se receberá as parcelas do financiamento. O plano não apresenta detalhes das garantias oferecidas pelo governo argentino. Levando em conta que as reservas cambiais do país estão esgotadas, será preciso usar a criatividade para apresentá-las.

Defensores da linha de crédito para a Argentina argumentam que o Fundo de Garantia à Exportação (FGE), vinculado ao Ministério da Fazenda, cobrirá eventuais calotes. Mas ter um seguro não é o mesmo que não ter risco. Nesse caso, a conta será transferida para todos os exportadores, e qualquer socorro caberá ao Tesouro. Vale a pena? O simples fato de a nova linha de crédito começar com tal preocupação é mau sinal. É verdade que os argentinos nunca deixaram de pagar o BNDES, mas já estão na 13ª renegociação com o FMI, depois de incontáveis moratórias.

O secretário executivo do Ministério da Fazenda, Gabriel Galípolo, afirma que a China tem financiado suas exportações para a Argentina e conquistado mercado. Pelas suas contas, o Brasil perdeu cerca de US$ 6 bilhões em cinco anos. Só faltou acrescentar que a China é uma potência global, com PIB 11 vezes equivalente ao brasileiro, e pode se dar ao luxo de correr riscos que nossas agruras fiscais não permitem.