O Globo, n. 32777, 04/05/2023. Economia, p. 19

Câmara derruba trechos de decretos do saneamento

Gabriel Sabóia


A Câmara suspendeu ontem trechos dos decretos nº 11.466 e nº 11.467, de 5 de abril de 2023, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que modificavam o marco legal do saneamento. A mudança na legislação do setor causou insatisfação entre os parlamentares e o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). Eles manifestaram descontentamento não só com a alteração do marco legal, que abriu caminho para a entrada do setor privado de olho no cumprimento de metas de universalização até 2033, como na forma como o governo fez isso, sem apresentar um projeto de lei. O placar para derrubar os trechos dos decretos foi de 295 a 136 votos.

O resultado foi considerado uma derrota para a base governista, que não conseguiu formar maioria, apesar dos esforços do líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE). Ele criticou publicamente os líderes de partidos que contam com ministérios e orientaram suas bancadas a votarem contra os decretos de Lula. Parlamentares do MDB e do PSD, partidos com cargos no primeiro escalão, votaram de acordo com os interesses da oposição, enquanto os deputados do União Brasil criticaram a capacidade de articulação da equipe de Lula. A matéria precisa agora ser avaliada no Senado para que os trechos dos decretos sejam efetivamente derrubados.

Os decretos de Lula sobre saneamento trazem dois pontos que foram alvos de crítica por parte de parlamentares e especialistas do setor. Um deles é a possibilidade de empresas estaduais prestarem o serviço em áreas metropolitanas, aglomerados urbanos e microrregiões sem necessidade de licitação. Empresas estaduais deficitárias seriam as principais beneficiárias, e especialistas apontavam risco de judicialização e de não cumprimento das metas previstas até 2033. Além disso, outro trecho polêmico era o que permitia a regularização de contratos que estavam precários no momento em que o marco legal do saneamento foi aprovado.

‘A base derreteu’

A legislação aprovada em 2020 forçava as companhias estaduais a organizarem as contas e comprovarem sua capacidade econômico-financeira de levar adiante os projetos e realizar investimentos. Era uma forma de garantir que as empresas seriam capazes de alcançar as metas no prazo previsto. Um dos decretos de Lula, porém, concedia mais prazo e permitia que as companhias incluíssem situações de prestação de serviço por meio de contratos provisórios, não formalizados, ou relações irregulares ou de natureza precária. Este foi outro ponto que a Câmara derrubou.

O país tem até 2033 para cumprir as metas de universalização, que incluem o fornecimento de água para 99% da população e a coleta e tratamento de esgoto para 90%.

Em caso de falta de capacidade, as companhias teriam obrigatoriamente que abrir licitação ou firmar parcerias público-privadas (PPPs) para assegurar o serviço, sob pena de não ter acesso a recursos públicos.

Lira já havia reclamado publicamente dos decretos de Lula: “Defendo a revisão do Marco Legal do Saneamento com o propósito de aperfeiçoar a legislação vigente. Porém, alerto que o Parlamento irá analisar criteriosamente as sugestões, mas não vai admitir retrocessos”, escreveu o presidente da Câmara em uma rede social.

Sem conseguir formar uma base para a votação, José Guimarães criticou partidos com cargos no primeiro escalão que não acompanharam os interesses do Palácio do Planalto.

— Isso fica como lição para todos nós aqui dentro. É um recado? Evidente que é, por várias razões. Sei o que está por trás disso e prefiro muitas vezes ser derrotado do que caminhar para a rendição. Isso não deve fazer prática do Parlamento. Essa decisão que a maioria dos líderes que participam do governo estão encaminhando contra o governo fica registrada aqui. Isso não é ameaça é apenas uma declaração de que nada mais importante do que você ser transparente — disse, acrescentando que os líderes foram intransigentes ao não dialogarem e que nunca tinha visto algo assim no Parlamento.

Mendonça Filho (UniãoPE), por sua vez, debochou do resultado:

— Estão vendo isso? A base derreteu — disse, para o riso de bolsonaristas presentes no local.

Do mesmo partido, Kim Kataguiri afirmou:

— Esta é a fraqueza do governo Lula, é bom que vejam o tamanho da fragilidade.