O Globo, n. 32777, 04/05/2023. Economia, p. 16

No limite: brasileiro recorre a crédito mais caro

Renan Monteiro


As famílias brasileiras estão entrando em um círculo vicioso do crédito: com dificuldade para pagar as contas, acabam recorrendo às piores linhas do sistema financeiro, como cheque especial, rotativo do cartão de crédito e, em um melhor cenário, ao crédito pessoal. É o que mostram dados divulgados pelo Banco Central (BC). Para se ter uma ideia, somente em março, R$ 40 bilhões de crédito foram tomados via cheque especial, linha que tem taxa de juros de 129% ao ano. No acumulado de janeiro a março, o cheque especial teve um crescimento de 12,6% nas concessões.

O panorama é o mesmo no rotativo do cartão de crédito, e não é à toa que o governo Lula estuda medidas para tentar estabelecer um teto de juros para essa linha. No acumulado até março, o crescimento dessa modalidade chegou a 18,9%, na comparação com o mesmo período de 2022. O pior é que os juros do rotativo subiram 17 pontos de fevereiro para março e atingiram 430% ao ano, o maior patamar desde 2017.

— As linhas do chamado hotmoney, ou seja, linhas sem lastro, sem garantias, são muito mais caras e têm prazo curto. Em momento de aperto monetário, elas são altamente restritivas, e a pessoa não deveria tomar. Mas é exatamente o que acontece tanto na pessoa física quanto na pessoa jurídica, num momento de desaceleração da economia, com fluxo de caixa estrangulado —explica Nicolas Tingas, economista-chefe da Acrefi.

Muitas famílias acabam recorrendo a esse tipo de crédito porque são de liberação automática e não exigem a comprovação de garantias, como no cheque especial ou no rotativo do cartão. Sem conseguirem financiamentos mais baratos e na hora da emergência, esses consumidores são empurrados para esse crédito mais caro.

É um cenário que se agrava diante da manutenção dos juros básicos da economia brasileira, a Taxa Selic, em patamar elevado.

O casal paulista Amanda Toschi, auxiliar administrativa, e Elvis Silva, técnico em TI, tem uma dívida de R$ 9 mil no cartão de crédito.

— Desde o final de novembro do ano passado estou acumulando dívida no cartão porque fiquei um ano desempregada. Provavelmente, mês que vem, que eu vou juntar um dinheirinho, ligarei para o banco para ver a questão das parcelas. Até lá estou acumulando a dívida —comenta Amanda.

O indicador de inadimplência do Serasa, de março de 2023, aponta para 70,71 milhões de brasileiros com dívidas bancárias e não bancárias. Os dados incluem dívidas relacionadas ao cartão de crédito, cheque pré-datado, cheque especial, carnê de loja, crédito consignado, empréstimo pessoal e prestações de carro e de habitação.

Programa desenrola 

É nessa conjuntura que o governo Lula vem articulando com os chamados “birôs de crédito”, como Serasa e SPC, o lançamento do programa Desenrola, para renegociação de dívidas por pessoas físicas. O foco, a princípio, será em quem recebe até R$ 5 mil.

O programa, segundo integrantes da Fazenda, funcionará como uma plataforma única para centralizar as demandas de pessoas endividadas e intermediar a negociação com as empresas. Há, contudo, problemas operacionais para viabilizar essa ferramenta com a participação do setor privado. Até o momento, não há previsão de lançamento do programa.

— Eu acho muito abusiva também a forma como os bancos captam em cima da dívida. Mesmo eu devendo no cartão, o banco ainda aumentou o meu limite de crédito. Não faz sentido, é como se fosse vantajoso a gente estar devendo para eles — comenta Elvis Silva.

Francisco Rodrigues, economista e especialista em finanças pessoais, lembra que a inflação elevada e a queda no nível de renda das famílias estimulam processos como a utilização recorde do dinheiro em poupança para fazer frente às necessidades básicas no dia a dia.

A poupança, aplicação financeira mais tradicional dos brasileiros, registrou R$ 51,2 bilhões em saques de janeiro a março, a maior retirada acumulada para o período desde 1995, de acordo com o BC. No primeiro trimestre do ano passado, os saques superaram os depósitos em R$ 40,37 bilhões.

— Estamos tendo mais saques da caderneta de poupança do que depósitos. Em paralelo, os principais bancos estão cobrando juros muito elevados da população no cenário de baixa confiança e risco de inadimplência —cita Rodrigues.

Luis Otávio Leal, economista-chefe da G5 Partners, vê uma sucessão de fatores: o aumento dos juros na economia encarece o crédito e eleva o comprometimento da renda das famílias. O resultado é maior inadimplência e redução do consumo.

Para as empresas, além do aumento no custo de crédito, houve fatores que elevaram a percepção de risco aos bancos, como o escândalo da Americanas, com a revelação de uma inconsistência da ordem de R$ 20 bilhões detectada em lançamentos contábeis da varejista.

— Até o início de janeiro, não tínhamos visto um impacto muito relevante do aumento dos juros sobre o crédito para as empresas. Só que ocorreu o evento “Americanas”, que serviu como um catalisador do processo de restrição de crédito para empresas —avalia Leal.

Os dados do BC mostram que as taxas médias de juros no crédito bancário às empresas estão 20% acima do que era praticado no início de 2022.

Sem o início da queda na Selic, a taxa básica de juros, Carla Argenta, economista-chefe da CM Capital, não observa perspectiva de melhora para os próximos meses nas negociações entre bancos e famílias ou entre bancos e empresas. Ela observa que o encarecimento do crédito está no “script”, com efeitos de curto prazo para controlar a inflação:

— Se, por um lado, a taxa de juros elevada implica um custo alto de captação desses bancos, para depois fazerem esses empréstimos, por outro lado, o banco enxerga, na outra ponta desse negócio, tomadores desses créditos cada vez mais endividados, e isso significa risco para as instituições. O resultado é o aumento das taxas de juros.