O Globo, n. 32778, 05/05/2023. Opinião, p. 2

Câmara corrige retrocesso promovido por Lula no Marco do Saneamento



A Câmara dos Deputados teve o bom senso de corrigir um dos maiores retrocessos promovidos pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva nos seus primeiros cem dias. Por 295 votos a 136, os deputados derrubaram na quarta-feira trechos de decretos assinados por Lula no começo de abril alterando o marco regulatório do saneamento, aprovado pelo Congresso há três anos. Espera-se que os senadores confirmem o reparo feito na Câmara.

No Brasil, quase 35 milhões não têm acesso à água tratada, e 100 milhões vivem sem coleta de esgoto. É uma tragédia com consequências nefastas na saúde da população. Dados do Banco Mundial mostram que, em saneamento, o Brasil está atrás de países com renda bem inferior, como Honduras, Bolívia, Peru ou Mongólia.

A principal causa dessa vergonha nacional foi o modelo baseado em empresas estatais, municipais e estaduais. Na maioria dos casos, elas servem de cabides de empregos para correligionários de prefeitos e governadores, sem prestar serviços satisfatórios, cobrar tarifas justas ou investir o necessário para suprir a deficiência crônica de água e esgoto que mantém boa parte da população em condições insalubres. Quem tem saneamento paga um preço baixo. Quem não tem está jogado à própria sorte.

Aprovado em 2020, o Novo Marco do Saneamento Básico criou regras para aumentar a competição entre empresas públicas e privadas com um objetivo: levar, até 2033, água potável a 99% da população e tratamento de esgoto a 90%. O prazo ainda está três anos além das metas das Nações Unidas, mesmo assim era o possível. Em pouco tempo, as mudanças se fizeram sentir. Além da venda da Cedae no Rio de Janeiro, houve licitações em Alagoas, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Amapá, Ceará e Goiás. Os investimentos garantidos pelas concessionárias somam R$ 72,2 bilhões. A população atendida pelo setor privado pulou de 14% para 23%.

Há cerca de um mês, apesar de ter sido eleito empunhando a bandeira do combate à miséria, Lula assinou decretos cujo único objetivo era atender à demanda de corporações sindicais e prefeituras interessadas na sobrevida de empresas municipais e estaduais, as maiores responsáveis pelo atraso no saneamento. Uma das medidas reduziu exigências para que as estatais comprovassem sua capacidade de investir. Outra permitiu que companhias estaduais prestassem serviço sem licitação em microrregiões, regiões metropolitanas e aglomerações urbanas mediante autorização de entidade representativa.

Nos últimos 30 dias, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), pressionou o governo para que fizesse as correções cabíveis, mas nada aconteceu. Na quarta-feira, a resposta veio na votação que derrubou as medidas mais retrógradas do decreto presidencial. A questão agora será analisada pelo Senado, que precisa referendar a decisão para manter a essência do marco do saneamento.