O Globo, n. 32779, 06/05/2023. Saúde, p. 19

Fim de uma era

Bernardo Yoneshigue


Em 30 de janeiro de 2020, quando um novo coronavírus descoberto em Wuhan, na China, havia chegado a outros 18 países, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que a nova doença, chamada Covid-19, representava uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Pouco mais de três anos depois, nesta sexta-feira, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, decidiu que chegou o momento de dar fim ao status mais alto de alerta da instituição.

— Ontem, o Comitê de Emergência se reuniu pela 15ª vez e me recomendou que eu declarasse o fim da emergência de saúde pública de interesse internacional. Eu aceitei esse conselho. É, portanto, com grande esperança que declaro o fim do Covid-19 como uma emergência de saúde global — disse Tedros.

O anúncio veio após a doença ter provocado cerca de 7 milhões de mortes oficialmente no planeta, número que a organização estima ser mais alto, de ao menos 20 milhões, devido à subnotificação. Porém, a queda recente nos óbitos é evidente: enquanto, em 2021, pior ano da crise, foram 3,51 milhões de vítimas fatais registradas, no ano passado o número caiu para 1,24 milhões, e segue em ritmo de diminuição.

— A decisão era algo que esperávamos, porque a Covid-19 na quase totalidade dos países já não é mais uma doença que sobrecarrega os serviços de saúde público e privados. Estamos vivendo uma estabilização no número de hospitalização e óbitos já há vários meses. Então não é mais tão necessário mobilizar tantos recursos financeiros, esforços, e por isso o status de emergência não é mais necessário — explica o vice-presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Alexandre Naime Barbosa, professor da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp).

Especialistas ouvidos pelo GLOBO afirmam que a medida não surpreende devido à melhora do cenário epidemiológico – creditada por eles às vacinas –, mas destacam que o fim da emergência não quer dizer que a pandemia, termo que passou a ser utilizado em março de 2020 quando a Covid-19 colocou pela primeira vez quatro bilhões de pessoas isoladas em suas casa, tenha acabado.

— A declaração de emergência é uma decisão administrativa da OMS, mas estar em pandemia ou não é uma análise técnica. Quando estamos na emergência, a organização adota atitudes excepcionais, como mecanismos de fornecimento de vacinas e testes, mudanças em critérios regulatórios, na aquisição de medicamentos. Mas o vírus segue circulando em âmbito mundial e com números altos — explica o vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Cláudio Maierovitch, ex-presidente da Anvisa e médico sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Eles reforçam que o principal é que a decisão da OMS não leve governos a deixarem de encarar o novo coronavírus como prioridade. No Brasil, por exemplo, a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) teve fim ainda no ano passado, em abril, porém o combate à doença continuou com novos imunizantes para a Ômicron e a incorporação de medicamentos ao Sistema Único de Saúde (SUS), como o antiviral Paxlovid, da Pfizer.

— Nós não podemos deixar que a perda de prioridade que vem acontecendo no mundo fique mais grave, e que continuemos a ter um número grande de casos e mortes. Porque se compararmos a situação hoje com dois anos atrás, claro, é muito melhor. Mas em termos absolutos, comparando com outros vírus, ainda é grave. Muitas pessoas têm sintomas e não se testam. Podemos fazer muito melhor com a vacinação. Houve um relaxamento geral com medidas simples que podem fazer a diferença — diz Maierovitch.

Vacinação foi crucial, mas ainda precisa melhorar

Unânime entre os especialistas é a opinião de que o grande fator por trás da melhora na situação sanitária é a campanha de vacinação histórica, que alcançou mais de 5,5 bilhões de pessoas no planeta com ao menos uma dose em pouco mais de dois anos – cerca de 70% da população mundial.

— Ainda temos o vírus circulando causando doenças e mortes, mas certamente, graças à vacinação, conseguimos diminuir o risco. Dar fim à emergência é um grande avanço, mas a OMS deixa bem claro que é importante continuarmos atentos para não sermos surpreendidos. Se a vacinação parar podemos ter de novo muitas pessoas doentes, hospitalizadas e morrendo. Então a campanha será rotina ainda por um bom tempo no Brasil e no mundo todo. Não podemos encarar os reforços como algo opcional, mas como parte essencial da proteção — diz Isabella Ballalai, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBim).

Os especialistas citam a baixa adesão das pessoas às doses bivalentes, administradas a menos de 15 milhões de brasileiros até agora, como um dos motivos que levam o Sars-CoV-2 (vírus da Covid-19) a ainda provocar cerca de 48 mortes por dia no país, segundo o Ministério da Saúde. Enquanto isso, a Influenza (gripe) provoca menos de cinco óbitos diários – de acordo com o total registrado no último ano.

Sobre o futuro da vacinação, embora seja incerto, a infectologista da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Raquela Stucchi, acredita que podem ser indicados novos reforços para aqueles de maior risco para doença grave. Além disso, destaca que estes indivíduos ainda devem fazer uma avaliação de risco ao frequentar locais de maior exposição.

— Tudo em vacinação nós avaliamos conforme a situação epidemiológica. Caso mantenha-se como está agora, a tendência é manter os reforços para grupos prioritários, talvez com campanhas semestrais. Mas não temos ainda como saber com certeza como vai ser. Além disso, temos ainda que ter a avaliação de um risco individual. Mesmo que vacinadas, pessoas que têm um risco aumentado para formas graves, como idosos, imunocomprometidos e gestantes, ainda devem usar máscaras em ambientes de maior transmissão, como fechados e com aglomeração, devido à circulação do vírus — diz.

Em âmbito global, Maierovitch destaca ainda a heterogeneidade da campanha de imunização como um empecilho para dar fim à pandemia. Apenas 30% da população dos países de baixa renda receberam ao menos a primeira aplicação, segundo a plataforma de dados Our World in Data, ao passo que em diversas nações, como o Brasil, já é oferecida, de forma necessária, a quinta.

Brasil tem histórico infeliz de combate à Covid-19

Ainda que hoje o Brasil tenha em curso hoje uma forte campanha de vacinação contra a Covid-19, a ausência de medidas de combate à doença marcaram os três anos de pandemia no país. Não à toa, é o segundo com mais mortes totais, que ultrapassam 700 mil, e está entre os dez primeiros com maiores taxas de óbitos por milhão de habitantes (considerando nações com pelo menos 10 milhões de pessoas).

Naime Barbosa, da SBI, afirma que, no início, o governo chegou a tomar decisões acertadas, como ao informar a população diariamente sobre o avanço da doença, mas que as sucessivas trocas e interferências no Ministério da Saúde levaram o país a eventualmente registrar mais de quatro mil mortes por dia, em abril de 2021, e tornar-se um exemplo negativo no combate à pandemia.

— Quando as decisões técnico científicas passaram a ser substituídas por decisões políticas, o país começou a afundar. Toda a equipe técnica foi desmontada, e os ataques ao isolamento social, às máscaras, às vacinas, com discursos a favor de drogas sem eficácia, como cloroquina e ivermectina, foram incorporados ao governo — diz.

Nesse pior momento sanitário, a Fiocruz chegou a afirmar que o Brasil vivia o maior colapso dos sistemas de saúde já registrado na história. O infectologista lembra que, embora a vacinação, que fez a diferença na pandemia, tenha começado ainda em janeiro daquele ano, ela apenas ganhou velocidade cerca de cinco meses depois, em junho. Nesse meio tempo, foram de 200 a 300 mil óbitos que poderiam ter sido evitados.

— O Brasil só chegou onde chegou porque a despeito dos mandantes nesses anos tivemos pessoas que persistiram na divulgação da ciência, na disponibilização e na campanha das vacinas. Pesquisadores sérios que buscaram orientar a população na imprensa, nas redes sociais. Profissionais da saúde que, mesmo com os riscos, não se furtaram à sua obrigação de salvar vidas — defende Stucchi.