O Globo, n. 32782, 09/05/2023. Opinião, p. 2

Ao tentar reestatizar Eletrobras, Lula sabota seu governo



Com tantos desafios, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva resolveu criar um novo problema para o próprio governo ao elevar o risco regulatório no setor elétrico. A Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade questionando a privatização da Eletrobras em junho de 2022. Embora o governo negue, o objetivo é reestatizar a empresa. Sem força para fazer o pleito avançar no Congresso, recorreu ao Judiciário. A insistência de Lula revela que não se trata de mero jogo de cena para radicais. Há um misto de conveniência (desejo de recuperar poder e o cabide de empregos) e convicção ideológica no investimento estatal.

A expectativa é que o Supremo rejeite a ação peremptoriamente, já que o modelo de privatização, mesmo imperfeito, foi discutido a fundo, aprovado no Congresso e sancionado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Mas o simples fato de Lula insistir no retrocesso contribui para deteriorar o ambiente de negócios. Em menos de um ano, uma privatização referendada por todas as instituições da República é atacada pelo novo governo. Quem arriscará investir no país com tal insegurança?

Na superfície, o argumento de Lula parece fazer sentido. A União tem 45% das ações ordinárias, considerando os papéis em poder do BNDES, de bancos públicos e dos fundos de pensão de estatais alinhados com o governo. Mas uma regra, que vale para todos os acionistas, limita o poder de voto a 10%. Na visão da AGU, “a regra limitadora do direito de voto gera ônus desproporcional à União e grave lesão ao interesse público, em clara violação ao direito de propriedade do ente federativo”.

Não é bem assim. O modelo escolhido para a privatização foi aumentar o capital e pulverizá-lo, sem dar a nenhum acionista poder absoluto. É prática corporativa comum, que aposta na qualidade da gestão com controle compartilhado. Não há cerceamento algum ao direito de propriedade. E é razoável haver teto para o direito a voto de uma companhia com o tamanho da Eletrobras. “Sem limite, empresas presentes ou com interesses no setor elétrico poderiam elevar a participação para influenciar as decisões em detrimento da própria Eletrobras”, diz Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

Quanto a brandir o argumento do interesse público, parece até piada da AGU. Por décadas a Eletrobras foi um cabide de empregos para quem tinha conexão política. Chegou a ter 26 mil funcionários. Só não quebrou em 2016 porque era da União. Às vésperas da privatização, em março de 2022, tinha 10.500 empregados. Em março passado eram 8.500. Sem nenhum prejuízo aos serviços. Ao contrário. No primeiro trimestre, os investimentos foram 200% superiores aos registrados no mesmo período de 2022. O resultado financeiro cresceu 44%. Não há dúvida de que, para a sociedade, é melhor uma empresa mais enxuta, mais lucrativa e com maior capacidade de investimento. É esse o interesse público.

O ano de 2023 tinha tudo para ser um dos melhores do setor elétrico em muito tempo. O nível dos reservatórios das hidrelétricas está em patamar acima dos 80%. Em março, o país ultrapassou a marca de 190 gigawatts de capacidade instalada na geração, recorde puxado pelo capital privado. Investimentos em fontes alternativas estão em fase de maturação.