O Globo, n. 32788, 15/05/2023. Saúde p. 8

Fim da picada

Karolini Bandeira


A artesã Maiani Canabarro, de 35 anos, trata diabetes tipo 1 há duas décadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Todos seus medicamentos, desde remédios a agulhas, são retirados gratuitamente no centro de distribuições de Porto Alegre (RS), onde mora. Contudo, nas últimas três semanas, ela não encontrou a insulina de ação rápida no local, e precisou recorrer no Facebook a um grupo de pessoas com a mesma doença para conseguir manter o tratamento.

A insulina de ação rápida controla o nível de glicose no sangue e deve ser injetada todos os dias, sempre antes das refeições. Com cada caneta saindo a cerca de R$ 50 nas farmácias, Maiani, que utiliza cerca de quatro unidades por mês, teria um gasto mensal de R$ 200 caso seu tratamento não fosse oferecido pelo SUS.

— Nunca precisei comprar, porque faço parte de um grupo de diabéticos, então vamos emprestando um para o outro quando não temos. Se eu não conhecesse o grupo, não teria condições financeiras de comprar as canetas, agulhas e fitas —afirma.

Perto da capital gaúcha, a professora Haike Schwingel, da cidade de Teutônia (RS), passa por uma situação parecida. Ela precisou comprar as canetas e está há quase um mês sem conseguir a insulina rápida na farmácia do estado.

— O argumento é sempre o mesmo: a farmácia alega que o estado não enviou mais a insulina e que está aguardando. Já são três semanas assim — conta a professora de 28 anos, que precisa de três canetas e meia de insulina de ação rápida por mês.

A Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul admite o problema e diz que tem remanejado os estoques para as cidades que mais precisam. Afirma ainda ser competência do Ministério da Saúde a compra dos medicamentos para distribuir aos estados. Procurada pela reportagem, a pasta não se manifestou.

Os casos da artesã e da professora do Rio Grande do Sul, contudo, não são isolados. A reportagem colheu relatos de desabastecimento de insulina rápida de pacientes no Ceará, no Acre e em Goiás. Em Anápolis (GO), por exemplo, o pai de Henrique Melo, de 10 anos, tem cobrado a farmácia do estado pelo medicamento da marca Apidra, a única que seu filho pode tomar.

— O SUS sempre disponibilizou a insulina Apidra, mas desde fevereiro não conseguimos pegar porque não tem. E ela é a única que meu filho pode usar, porque ele não apresenta um bom controle sistêmico com as outras. A sensação é de medo — diz Hebert Melo.

O estoque também é limitado em São Paulo e Rondônia. As secretarias de Saúde dos dois estados informaram ao GLOBO que as farmácias públicas de medicamentos estão abastecidas com estoque de insulina de ação rápida suficiente para, respectivamente, 45 e 60 dias. Ceará, Acre e Goiás, por sua vez, dizem ter normalizado o fornecimento.

As prateleiras vazias de insulina rápida nos estados são fruto de tentativas frustradas do Ministério de Saúde de comprar o produto. Nos dois últimos pregões regulares abertos, em agosto de 2022 e em janeiro de 2023, não houve propostas. Em nota publicada no início de abril, a pasta informou que o estoque acabaria a partir de maio.

Para evitar um desabastecimento nacional, a solução encontrada pelo governo foi abrir uma compra emergencial, quando até mesmo produtos de laboratórios estrangeiros sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) podem ser adquiridos. E foi exatamente o que aconteceu. No último dia 20, o ministério fechou acordo para adquirir 1,3 milhão de tubetes de insulina da Globalx Technology Limited.

A compra, porém, é contestada pela Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), que questiona a qualidade da insulina.

—Temos receio sobre essa nova compra. A Anvisa desconhece o produto. Nosso medo é a qualidade —diz o presidente da SBD, Levimar Araújo.

A Globalx afirmou que a insulina será importada de acordo com os critérios de “segurança e eficácia para o fornecimento emergencial” e que o produto tem “eficácia e qualidade aprovada junto ao National

Medical Products Administration”, o equivalente à Anvisa na China.

Nas aquisições anteriores, o governo havia fechado acordo com o laboratório Novo Nordisk. Em contato com a reportagem, a empresa informou que não participou dos dois últimos pregões regulares “diante de restrição na capacidade produtiva da empresa para atender especificamente o volume e período da demanda do órgão público”. E completou: “Já em relação à compra emergencial, a Novo Nordisk fez uma proposta que não foi aceita pelo Ministério da Saúde, que optou por outro fornecedor”.

Empresas do setor alegam, sobretudo, que o preço de referência usado pelo governo está defasado e que não conseguem vender no valor máximo previsto pelo pregão.

Alerta

Em março, o Tribunal de Contas da União (TCU) chegou a fazer um alerta ao ministério sobre o risco de faltar insulina para diabetes nos estados. A fiscalização realizada pela Corte foi aberta a pedido do Congresso Nacional para apurar eventuais “irregularidades existentes nas compras, entregas e armazenamento dos medicamentos utilizados no tratamento de diabetes”.

Diante do risco de um apagão de insulina no país, o Ministério da Saúde chegou a orientar os estados, no início de abril, que em caso de necessidade substituíssem as canetas de insulina pelo medicamento em frascos. Esse tipo de aplicação, contudo, não é bem avaliada por especialistas, pois tem uma ação mais demorada, e a aplicação por meio de seringas representa uma dificuldade extra aos pacientes.

A curto prazo, a falta de insulina rápida pode causar náusea, vômitos, dores abdominais, respiração descompassada e confusão mental. Os sintomas vêm de uma condição conhecida por especialistas como cetoacidose diabética, explica o cirurgião-geral Fábio Rodrigues:

— Essa condição ocorre quando nosso organismo não consegue colocar a glicose para dentro da célula. Quando isso acontece, o corpo começa a queimar gordura como fonte de energia no lugar do açúcar.

A longo prazo, a falta de insulina rápida pode levar a complicações crônicas, como danos a nervos, rins, olhos e coração.