O Estado de S. Paulo, n. 46627, 15/06/2021. Política, p. A8

O dia em que a Saúde baniu o uso da palavra ‘quarentena'

Mário Scheffer


Em 6 de agosto de 2020, dois dias antes de o Brasil atingir a marca de 100 mil mortes por covid-19, uma reunião do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública (COE-NCOV) do Ministério da Saúde determinou que "os termos quarentena e auto-isolamento não serão mais utilizados nos documentos técnicos".

Após exposição de sumários de artigos científicos sobre isolamento e distanciamento social, a ata da reunião destaca crítica feita às referências apresentadas, que "não consideraram o momento epidemiológico da doença nos diferentes países responsáveis pela bibliografia existente".

Em encontro anterior do COE, do dia 25 de maio, quando experiências internacionais estavam em pauta, foi ressaltado que "toda pesquisa leva a acreditar que medidas sociais drásticas dão resultados positivo; que "sem intervenções, esgotamos UTIS, os picos vão aumentar descontroladamente"; e que "sem isolamento (levará) um tempo muito grande de um a dois anos para controlarmos a situação". A premonição das evidências foi seguida de "questionamentos sobre as fontes da pesquisa e a singularidade do Brasil". A decisão final do COE foi, então, criar um "protocolo brasileiro que atenda nossas necessidades específicas".

O COE é o "mecanismo nacional da gestão coordenada" da resposta à covid-19, conforme portaria que declarou, em fevereiro de 2020, a Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN). O Ministério da Saúde enviou à CPI atas de reuniões do COE entre maio de 2020 e março de 2021, quando o ministro era Eduardo Pazuello, agora alvo de quebra de sigilo.

Embora quarentena, para indivíduos com covid e seus contatos próximos, e isolamento social, em função de medidas coletivas de restrição de circulação, sejam conceitos distintos, ambos os termos têm sido frequentemente usados de forma intercambiável nas respostas dos países à pandemia.

Chega a ser ofensiva, em pleno pico da epidemia no Brasil em 2020, a deliberação de abolir ou trocar o nome de estratégias imprescindíveis de controle do vírus. É robusta a coleção de evidências sobre a eficácia da combinação das chamadas medidas de prevenção não farmacológicas, que reduziu a transmissão do vírus em muitos países, segundo estudos publicados nas prestigiosas revistas Nature e Science.

As três linhas prioritárias de investigação da CPI seguem o rastro da falta de vacinas, da prescrição oficial da cloroquina e da existência de um gabinete paralelo. Na leitura dos documentos recebidos pela CPI – passam de 800 os arquivos acumulados – saltam aos olhos novas pistas, desde a falta de uma política de testagem à posição do governo Bolsonaro, contrária a medidas rígidas e ampliadas de isolamento, o que levou à adoção de iniciativas fragmentadas e de baixa intensidade por parte de Estados e municípios.

Procurado para se pronunciar sobre as atas e a elaboração de um "protocolo brasileiro", o Ministério da Saúde não se manifestou até a conclusão deste texto (veja a íntegra dos documentos citados no blog 'Diário da CPI', no portal do Estadão). Compatíveis com o plano de trabalho original da CPI, essas novas peças podem ser determinantes para concluir quem são os responsáveis pela escalada de mortes que poderia ter sido evitada no Brasil.

Professor da Faculdade de Medicina da USP