Título: Além do Fato: A moralidade da não-proliferação
Autor: Joseph S. Nye
Fonte: Jornal do Brasil, 05/06/2005, Internacional, p. A13

Quase todas as nações se encontraram em Nova York para discutir a revisão do Tratado de Não-Proliferação. O TNP foi negociado em 1960 depois que cinco países (Estados Unidos, União Soviética, Grã-Bretanha, França e China) desenvolveram armas nucleares. Índia, Paquistão e Israel se recusaram a aderir e, ao longo dos anos, construíram suas próprias bombas atômicas. Agora, a Coréia do Norte e o Irã estão sendo acusados de violar seu compromisso com o acordo ao buscar também armas nucleares. Assuntos legais à parte, há aí uma discussão moral sobre a não-proliferação? Em um mundo de Estados soberanos, não é uma hipocrisia para alguns que possuem tais armamentos negar isso aos outros?

Se ninguém tivesse a bomba hoje, seria melhor que ela nem tivesse sido inventada. Mas a História depende das trilhas que são seguidas no passado. Suponhamos isso em 1939, e com os Estados debatendo se os EUA deveriam inventar a arma. Eles poderiam ter argumentado que ou todos a teriam, ou nenhum. Mas se sabiam que a Alemanha de Hitler pesquisava o assunto e tinham chance de chegar a um sucesso, poderiam ainda ter aprovado a decisão de Franklin Roosevelt de desenvolvê-la antes dos nazistas.

Além disso, voltar o relógio é impossível. Mesmo que todos os países concordem em se desarmar, alguns certamente estarão blefando. Os blefes bem-sucedidos ocorreriam mais nos Estados totalitários do que nos democráticos, onde a transparência é maior. Exemplo: a Coréia do Norte afirma ter desenvolvido armas nucleares a despeito de ter assinado o TNP. E a Líbia também tinha um programa nuclear oculto.

Se alguém observa com imparcialidade e atenção as consequências como algo essencial à retidão moral, poderia imaginar países aceitando a moralidade da posse desigual das armas nucleares em certas condições. Por exemplo, se a proposta fosse limitada à autodefesa. Os Estados que tivessem armas poderiam adotar passos específicos para reduzir as perspectivas de seu uso. As armas poderiam ser acionadas para preservar a independência de todos os Estados, mais do que para sua afirmação imperial, e passos igualmente poderiam ser dados para reduzir arsenais quando as condições políticas o permitissem. Hoje, o TNP vem se aproximando de refletir tais condições.

Naturalmente, o tratado não é baseado apenas no preceito moral, mas primariamente em interesses próprios e prudência. Muitos Estados aderiram porque acreditam que sua segurança poderia ser reduzida se mais Estados obtivessem arsenais atômicos. O tratado os ajuda a diminuir o medo de um blefe de vizinhos porque prevê inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). A credibilidade das garantias de segurança americanas para os seus aliados é uma das razões pelas quais as bombas não se disseminaram por 25 países em uma década, como o presidente John F. Kennedy esperava.

A não-proliferação não é algo hipócrita se for baseada em uma estimativa imparcial e realista dos perigos. Mas se um Estado como Coréia do Norte ou Irã decide aceitar correr esses riscos, poderia ser isso resultado apenas da própria escolha dos seus líderes?

Talvez, se os riscos fossem divididos apenas pelos próprios habitantes, mas isso não ocorre. Terceiros sempre justificam suas recusas a perigos que poderiam ser impostos a eles. A história da proliferação nuclear mostra que a cadeia de reações políticas pode ocorrer eventualmente ¿ atraindo China, Índia e Paquistão ¿ e existe o medo real que Coréia do Norte e Irã possam disparar esse gatilho no Nordeste da Ásia e no Oriente Médio.

Algumas pessoas reagiriam dizendo que a proliferação pode realmente implicar em redução de riscos. Chama-se isso de ¿teoria porcupina¿. Em um mundo confuso, nenhum país aceita a agressão. Mas isso assume a existência de uma racionalidade perfeita. No mundo real, acidentes ocorrem, assim mais proliferação pode ter grande chance de um uso eventual inadvertido, enfraquecendo a capacidade de gerenciamento de crises nucleares e aumentando a dificuldade em estabelecer controles e a redução do papel das armas nucleares no mundo politico.

Além disso, quanto mais Estados possuírem armas nucleares, maior a perspectiva de que extremistas possam ter acesso a elas. Naturalmente, terroristas transnacionais normalmente não possuem um ¿endereço de retorno¿ que permita o uso de uma deterrência mútua, mas a Coréia do Norte ou o Irã não tem o direito moral de impor esses riscos aos outros.

Três países da União Européia ¿ Grã-Bretanha, França e Alemanha ¿ estão tentando persuadir o Irã a desistir de seu programa de enriquecimento nuclear, que poderia permitir o uso de material para fabricação de bombas rapidamente depois de uma saída do tratado. O Irã afirma que tem direito a fazer o enriquecimento pelo artigo 4 do TNP, mas o texto precisa ser interpretado à luz dos outros artigos e das decepções de Teerã junto à AIEA. No Leste da Ásia, a Coréia do Norte se retirou do TNP depois de usá-lo como despiste para seu programa atômico de armamentos, e China, Estados Unidos, Japão, Rússia e Coréia do Sul estão tentando persuadir o regime de King Jong Il a rever seu curso.

Soa como direito desses países tentarem dissuadir Teerã e Pyongyang de impor novos riscos ao mundo. Mas a existência de Estados bélicos nucleares também se inclui dentro das condições morais que sublinham as barganhas no TNP. A obrigação do artigo 6 de reduzir arsenais não pode ser interpretada como um requerimento de pronto desarmamento, a menos que isso possa fortalecer a estabilidade. Mas os países que têm armas atômicas poderiam continuar a reduzir o papel desse arsenal, e frear novos programas que sugerem perspectivas de seu uso.

Dados os perigos que ampliam os riscos implicados para todo mundo, existe um forte conteúdo moral para que seja feita uma política que interrompa a proliferação preferivelmente a argumentar que Irã e Coréia do Norte têm o direito de fazer o que quiserem enquanto Estados soberanos. Mas é importante também aos membros lembrar que as obrigações da não-proliferação abalam os Estados nucleares. (Project Syndicate)

*Ex-subsecretário de Defesa do Estados Unidos, diretor do Conselho Nacional de Inteligência e professor da Universidade de Harvard