O Globo, n. 32794, 21/05/2023. Mundo, p. 22

Impressão de “armadilha''



O presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, roubou a cena da cúpula do G7 ao chegar ontem ao Japão em um avião emprestado pela França, deixando a delegação brasileira pressionada a aceitar o convite feito na véspera para um encontro entre o líder ucraniano e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, disseram à Bloomberg funcionários sob condição de anonimato. Lula, que participa do evento como convidado, respondeu com um sucinto “não sei” quando questionado se manteria uma audiência bilateral com Zelensky quando saía de seu hotel para cumprir a agenda do dia.

Por enquanto, só havia previsão de Zelensky se encontraria com Lula no fim da noite de sábado no Brasil, já manhã de domingo no Japão, durante uma reunião conjunta com o G7 e com os países convidados à cúpula, grupo que, além do Brasil, inclui Índia, Coreia do Sul, Indonésia, Comores (país na presidência rotativa da União Africana), Austrália, Vietnã e Ilhas Cook (atualmente à frente do Fórum das Ilhas do Pacífico).

O Brasil não tem nenhum problema em sentar-se com qualquer líder, mas isso não deve ser imposto, disse um funcionário brasileiro à Bloomberg, descrevendo a presença de Zelensky como uma “armadilha” para convidados que não fazem parte do G7 (Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido). Outros reclamaram que só souberam da visita de Zelensky quando Lula já estava no Japão.

Ainda segundo a Bloomberg, muitos na delegação brasileira estavam nervosos com a possibilidade de Zelensky participar da chamada foto de família do G7, que inclui os integrantes do grupo e convidados, e sentiram alívio quando ele não apareceu.

Em reunião bilateral ontem, o presidente francês, Emmanuel Macron, pediu a Lula que se sentasse com Zelensky, segundo pessoas familiarizadas com a conversa. Um porta-voz de Macron afirmou que a Ucrânia foi tema da conversa, mas não confirmou se tal pedido foi feito. O líder brasileiro apenas disse em um tuíte que a Ucrânia foi discutida.

Proposta de paz

Ao contrário do G7, o Brasil assumiu uma postura mais neutra em relação à guerra, defendendo a criação de um clube de nações para intermediar a paz. Também argumentou às vezes que Zelensky, os EUA e as nações europeias compartilhavam a culpa pela invasão da Ucrânia pela Rússia de Vladimir Putin — atraindo críticas dos EUA e da União Europeia

Na últimas semanas, porém, Lula suavizou sua postura, atenuando alguns comentários e enviando o assessor para assuntos internacionais do Palácio do Planalto, Celso Amorim, a Kiev em 10 de maio —no início de abril, ele se reuniu com Putin em Moscou. Em Brasília, Amorim minimizou ao GLOBO a questão e disse que a tendência é que eles se encontrassem:

— Estou dando uma opinião. Há uma tendência, dentro do possível, de que Lula o receba — disse Amorim, que acompanha à distância as conversas diplomáticas do evento.

— Se o Putin pedisse, (Lula) também receberia. Há muita clareza da parte dos russos sobre o Brasil ser um interlocutor. Nossa posição é buscar a paz. Não deixaremos de ter diálogo com a Rússia de jeito nenhum. Eles compreenderão.

Declaração antecipada

Organizada às pressas, a visita de Zelensky fez com que os líderes do G7 divulgassem a declaração final um dia antes do previsto, na qual condenaram a Rússia pela invasão da Ucrânia e pediram à China, aliada de Moscou e que nunca condenou a invasão, que “pressione a Rússia para que encerre sua agressão” e “retire imediatamente, totalmente e sem condições suas tropas” do país do Leste Europeu. No comunicado, também alertaram contra a “coerção econômica”, que Pequim é acusada de fazer contra vários países.

Com os países convidados, o G7 divulgou uma segunda declaração, com o tema de segurança alimentar, em que não houve críticas à Rússia. No texto, os países afirmam que a guerra na Ucrânia agravou ainda mais a crise de segurança alimentar no mundo, dizendo que “apoiam uma paz justa e duradoura”. Durante a semana, diplomatas brasileiros haviam admitido o desejo de que a nota não se tornasse um “ato contra a Rússia” e, ontem, o Itamaraty avaliou o tom do texto como “adequado”. Zelensky chegou por vota das 15h30 locais (3h30 no horário de Brasília), horas depois de Washington anunciar que ajudará nos esforços de treinamento de pilotos ucranianos no uso dos caças americanos F-16 e permitirá que os aliados forneçam os jatos a Kiev – uma medida condenada pela Rússia, mas descrita por Zelenky como “histórica”.

Nas 24 horas anteriores, o suspense se Zelesky realmente conseguiria ir a Hiroshima dominou as notícias no Japão. O horário de sua chegada só foi revelado quando as TVs japonesas repentinamente passaram a transmitir as imagens dele desembarcando no aeroporto de Hiroshima de um avião emprestado pelo seu aliado francês, o presidente Emmanuel Macron, que afirmou que sua presença em Hiroshima “pode mudar o jogo” para Kiev. Assim que chegou, o ucraniano deu início a uma série de encontros bilaterais com vários líderes mundiais, começando pelo primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak, que o cumprimentou com um amigável: “Você conseguiu [vir]!”

Encontro com Modi

Zelensky também se reuniu com o francês Macron, o chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, a premier da Itália, Giorgia Meloni, com os quais trocou abraços ou apertos de mão calorosos. Mas, com o premier indiano, Narendra Modi, cujo país se nega a condenar a agressão russa na Ucrânia, o encontro foi mais contido, tendo início com um protocolar aperto de mãos. A Índia tem vínculos políticos, econômicos e militares estreitos com a Rússia e, apesar da pressão dos EUA, escolheu um meio termo que, dizem autoridades do país, centra-se em seus próprios interesses e crescente influência – posição que frustra Kiev e os aliados ocidentais de Modi. Modi, em seu primeiro encontro com Zelensky desde o início da invasão, ressaltou a importância de resolver a guerra pelo diálogo e a diplomacia, expressando seu desejo de contribuir para apaz. – Entendo perfeitamente seu sofrimento e dos cidadãos ucranianos. Posso assegurar que, para resolver [esse conflito], a Índia, e eu pessoalmente, faremos todo o possível – disse Modi a Zelenski.

Em breve mensagem no Twitter, Zelenky disse que discutiu as necessidades humanitárias da Ucrânia e convidou Modi a unir-se à iniciativa de paz da Ucrânia, que impõe como pré-condição para quaisquer negociações a retirada da Rússia de todo o território ucraniano.

No mês passado, Lula viajou à China para discutir a proposta de cessar-fogo do presidente Xi Jinping, que efetivamente congelaria as tropas russas na Ucrânia. Zelensky rejeitou qualquer estrutura que não envolva a retirada total das forças russas, posição também repetida pelo G7 no Japão.

Além do encontro com Macron, Lula se reuniu ontem com o premier do Japão, Fumio Kishida, com o presidente da Indonésia, Joko Widodo, com o alemão Scholz e a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, com quem tratou, entre outros temas, da crise argentina. Lula havia prometido ao colega argentino, Alberto Fernández, interceder em favor da renegociação do acordo do país vizinho com o FMI, mas não foram revelados detalhes das conversas.