O Globo, n. 32795, 22/05/2023. Mundo, p. 20

Longe do 'norte'

Leda Balbino
Dimitrius Dantas


O presidente Luiz Inácio Lula da Silva terminou ontem sua participação na cúpula do G7 no Japão sem se reunir com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e deixando ainda mais marcadas suas diferenças com o “Norte”, em uma referência aos EUA e à União Europeia, não só no que se refere à guerra na Ucrânia, mas também aos interesses do Brasil nas relações com países como a China.

Durante uma coletiva na noite de domingo, manhã de segunda no Japão, Lula afirmou quea China e um grupo de países do Sul, incluindo Brasil, Índia e Indonésia, defendem uma iniciativa que coloque a paz em discussão, enquanto o Norte, em referência ao Ocidente, “quer a guerra”. Compostos pelas democracias mais industrializadas do mundo, o G7 é formado por Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido.

— Ontem vocês viram o discurso do presidente [Joe] Biden, que não fala em paz, ou seja, ele fala que a Rússia tem que sair [da Ucrânia], e não sei se vai acontecer —disse.

— Então tem uma parte que quer guerra e outra que quer a paz, e espero que a parte que quer a paz saia vencedora disso.

Posteriormente, ao ser repetidamente questionado sobre o conflito e a não realização de um esperado encontro entre ele e Zelensky, o presidente brasileiro foi categórico:

— Não vim para o G7 para discutir a guerra na Ucrânia — disse, afirmando que foi à cúpula para discutir economia e clima:

— Disse no meu discurso que as discussões sobre a guerra deveriam estar acontecendo na ONU —afirmou.

Lula se referia a um discurso feito na sessão de trabalho “Rumo a um mundo pacífico, estável e próspero”, da qual Zelensky também participou, em que defendeu a integridade territorial da Ucrânia, afirmou que a Rússia deve explicações sobre a invasão, mas defendeu o debate do âmbito da ONU. No discurso, ele também criticou o Conselho de Segurança da ONU, cujos membros permanentes são EUA, Rússia, China, França e Reino Unido.

— Os membros permanentes perpetuam a antiga tradição de realizar guerras não autorizadas, que sejam com objetivos de expansão territorial ou mudança de regime —afirmou, em referência à invasão do Iraque, em 2003, por uma coalizão liderada pelos EUA.

Na coletiva, reiterou a necessidade de reforma no órgão afirmando que “a ONU não tem mais autoridade pra manter a paz no mundo porque são os membros do Conselho de Segurança que fazem guerra”.

— Não tem ninguém ali para discutir paz. São todos envolvidos. Os membros do conselho são os que produzem e vendem armas — afirmou.

— É preciso mudar a lógica das Nações Unidas. O mundo de 2023 não é o de 1945.

Na coletiva, Lula também defendeu a posição de distanciamento do dólar, que compartilha com a China, afirmando sonhar com o uso de várias moedas no comércio internacional, para não ser dependente de uma só.

— Não quero que aconteça uma outra Guerra Fria entre China e EUA, e a gente fique submetido à disputa dos dois.

Encontro frustrado

Lula também explicou que esperou por Zelensky para um encontro marcado para a tarde de domingo, mas que ele não apareceu:

— O fato é simples. Tinha uma bilateral com a Ucrânia às 15h15. Nós esperamos e recebemos a informação que eles atrasaram — declarou Lula, acrescentando:

— A Ucrânia não apareceu. Certamente teve outro compromisso.

Durante uma coletiva mais cedo, Zelensky disse que “todos têm suas próprias agendas, por isso que não pudemos nos reunir com o presidente brasileiro”.

Ao ser questionado por repórteres em Hiroshima se estava desapontado por não ter encontrado Lula, Zelensky respondeu com um sorriso malicioso:

– Acho que ele ficou desapontado.

Questionado se havia ouvido a declaração de Zelensky, Lula afirmou que só ficou “chateado” por não tê-lo encontrado, mas que não medirá esforços para uma reunião com ele e o presidente russo, Vladimir Putin, quando os dois mostrarem disposição para discutir a paz.

— O que eu sinto é que nem o Putin nem o Zelensky estão falando em paz nesse momento. Me parece que os dois acreditam que alguém vai ganhar e não precisa discutir a paz. — afirmou.

— Paz só é possível se os dois quiserem.

A expectativa do encontro foi frustrada após uma demora do Brasil em responder ao convite de Kiev, feito dois dias antes, e mesmo enquanto Kiev tenta engajar os países do Sul Global a adotar uma posição mais dura contra a Rússia. No evento, Zelensky se reuniu com o premier da Índia, Narendra Modi, cujo país se nega a condenar a agressão russa na Ucrânia, e também com o presidente da Indonésia, Joko Widoko, que defende esforços de paz.

Funcionários brasileiros afirmaram que ao menos dois horários foram oferecidos a Zelensky na tarde de ontem– último dia da cúpula, quando o líder ucraaniano já tinha encontros marcados com o presidente dos EUA, Joe Biden, e o primeiro-ministro do Japão, Fumio Kishida, anfitrião do evento.

Mediação em risco?

Para Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), a aparente relutância do Brasil no encontro com Zelensky a princípio não desqualifica o Brasil como um possível mediador. O professor lembrou que o país foi o único integrante dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que votou a favor de uma resolução na ONU condenando os ataques da Rússia à Ucrânia.

Essa postura, afirma, diferencia o Brasil da Índia. Na visão de Loureiro, Nova Délhi tem uma parceria mais estratégica com a Rússia do que o Brasil. Também apontou como positivo as viagens do assessor especial Celso Amorim para a Rússia e, posteriormente, para a Ucrânia.

— Então, houve uma tentativa do Brasil de equilibrar o que foi considerado uma posição brasileira em determinados momentos mais pró-Rússia. Isso, resumindo, leva à conclusão que o ato isolado específico do presidente Lula de não ter se encontrado não desqualifica a possibilidade de o Brasil atuar como mediador — disse.

Guilherme Casarões, cientista político da Fundação Getúlio Vargas (FGV), apontou que a comitiva brasileira não considerou o G7 como o melhor fórum para o encontro.

— Creio que o grande receio da diplomacia brasileira era que a cúpula do G7 deixasse de lado sua agenda econômica e se tornasse uma plataforma de condenação à Rússia, colocando o Brasil numa situação delicada, visto que o convite a Lula não tinha relação com a guerra —afirma.

Segundo ele, o Brasil tem procurado adaptar sua narrativa sobre o conflito, abandonando algumas das primeiras declarações de Lula e com o envio de Amorim a Kiev.

— Esse episódio isolado, portanto, não me parece impedir os esforços brasileiros de mediação coletiva —afirmou.

Para o ex-embaixador e exministro Rubens Ricupero, ainda não é possível apontar qual o real motivo que levou à aparente relutância do Brasil no encontro. Mas, ao deixar a oportunidade, o Brasil diminui sua relevância na discussão sobre o conflito.

— Não sei se houve impossibilidade real de agenda ou se faltou vontade e, neste caso, de quem foi a falta de interesse. Sem informação factual, seria leviano especular. De qualquer modo, não facilita um eventual papel de mediação de Lula e confirma a pouca relevância do Brasil no tema.