O Estado de S. Paulo, n. 46617, 05/06/2021. Política, p. A4

Alto comando deu aval a decisão sobre Pazuello

Felipe Frazão


A decisão do comandante-geral do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, de livrar de punição o general da ativa Eduardo Pazuello, exministro da Saúde, por participar de manifestação favorável ao presidente Jair Bolsonaro, recebeu o respaldo da alta cúpula da Força Terrestre. Para eles, Paulo Sérgio tentou estancar o que poderia ser uma crise maior e resultar na segunda troca de comando em dois meses. O gesto de subserviência do Exército ao desejo do presidente, porém, despertou a preocupações de que o comando possa ceder novamente em outros tipos de pressões de Bolsonaro.

A opção por isentar Pazuello foi individual e exclusiva de Paulo Sérgio. O comandante-geral, porém, consultou o Alto Comando antes, num sinal de busca de consenso e respaldo. O colegiado, do qual ele participa, é formado por 17 generais que ocupam os postos mais altos da Força. O Exército comunicou oficialmente o arquivamento do caso, mas pouco explicou. E nem cogita fazê-lo.

Segundo um oficial, “o silêncio é fruto da disciplina” que eles desejam preservar e a aposta para recuperar a instituição de um grande dano de imagem. Generais que despacham no Forte Caxias (Quartel-general do Exército), no entanto, explicaram, sob anonimato, algumas das razões para o desfecho.

Em 23 de maio, Pazuello participou de um passeio de moto com militantes bolsonaristas no Rio, subiu em um carro de som, acenou e fez um breve discurso, ao lado do presidente e de congressistas. Ele alegou que o ato não era político-partidário ou eleitoral. O comandante acatou a explicação.

Uma das justificativas é que aplicar uma punição a Pazuello soaria como reprimenda ao presidente, o comandante supremo das Forças Armadas. Pazuello não tinha registro de transgressões anteriores e estava ao lado de Bolsonaro, o que poderia ser interpretado, numa versão bastante controversa mesmo entre militares, como autorização para se manifestar.

Segundo auxiliares diretos, Paulo Sérgio teria servido como uma espécie de anteparo à iminente escalada de crise. Se punisse Pazuello, a contragosto do presidente, correria o risco de ser desautorizado e ter de entregar o cargo, abrindo espaço para Bolsonaro nomear alguém ainda mais obediente, no estilo Pazuello, em seu lugar.

Na prática, o comandante atendeu Bolsonaro, que não queria ver seu novo secretário de Estudos Estratégicos advertido ou repreendido. A decisão surpreendeu oficiais no Quartel-general, pois havia uma inclinação a punir, aplicando o Estatuto dos Militares e o Regimento Disciplinar do Exército. “Há vitórias e vitórias”, disse um general da ativa.

Apesar do clima de constrangimento geral, oficiais que despacham no Forte Caxias descartam a possibilidade de renúncias no Alto Comando. A próxima reunião, prevista para ocorrer entre 21 e 25 de junho, discutirá promoções já programadas, o que vai acarretar em alterações na composição da cúpula verde-oliva.

General intendente de três estrelas, topo da carreira, Pazuello já era considerado um “caso perdido”, por quem não valeria a pena o risco de ampliar a crise com o Palácio do Planalto. Agora, há no QG a expectativa que ele se dedique de vez à política e afaste-se do Exército, onde estava sem função específica desde março, quando foi demitido do ministério. Nas palavras de um oficial de alta patente, Pazuello não reunia mais “condições mínimas” de voltar a posições de comando perante a tropa.

‘Adequada’. Ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, o general de Exército da reserva Maynard de Santa Rosa considerou a decisão adequada. Para ele, o “incidente” foi provocado por Bolsonaro. “Não é justo transferir para o Exército a responsabilidade de julgar um incidente de natureza política insignificante para a Instituição. O Pazuello é um militar em final de carreira, que foi empregado em cargo político e não representa a Força. O incidente foi provocado pelo presidente da República, provavelmente, por ser do seu interesse”, disse.

“Houve um ataque frontal à disciplina e à hierarquia, princípios fundamentais à profissão militar. Mais um movimento coerente com a conduta do presidente da República e com seu projeto pessoal de poder. A cada dia ele avança mais um passo na erosão das instituições”, afirmou o general de Exército da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo. “A união de todos os militares com seus comandantes continua sendo a grande arma para não deixar a política partidária, a politicagem e o populismo entrarem nos quartéis.”

O desfecho fez lideranças políticas questionarem se as Forças Armadas teriam aderido de vez ao governo Jair Bolsonaro e até que ponto os militares de alta patente estariam dispostos a ceder às vontades de seu comandante em chefe. A dúvida se impôs pelo fato de o Exército ter deixado passar uma transgressão disciplinar praticada em público, fartamente documentada, e para a qual existe proibição expressa nas normas militares.

O presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, considera que houve um erro triplo: do presidente, do comandante e do general. Kassab afirma que o sentimento majoritário entre lideranças políticas é o de que não havia “justificativa plausível” para isentar Pazuello. Ele classifica a situação como “temerária” e questiona como as Forças Armadas irão se portar no futuro em novas “ações provocativas” de Bolsonaro.

“Como vamos ficar para daqui para frente? Os mais generosos podem até dizer que há um impasse, e os mais críticos, que a situação é temerária. Eu me incluo entre os mais críticos”, disse Kassab. “Essa decisão é muito perigosa. Nenhum país pode prescindir de regas nas Forças Armadas. Mostrou falta de autoridade. O presidente não pode interferir muito numa organização de Estado. Não é possível que as pessoas não entendam que aquilo foi ato político. O presidente tem direito de participar, mas militares da ativa não.”

‘Precedente Pazuello’. Essas questões também rondam a cabeça de generais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. A grande preocupação é o que fazer em casos futuros de indisciplina. Com a proximidade das eleições e o acirramento da polarização política, almirantes dão como certo que haverá novas participações de militares em atos de viés político, a favor e contra o presidente. Há preocupação com dificuldade de punir transgressões similares no futuro, pelo “precedente Pazuello”, e abrir rachas nas bases aéreas, distritos navais e divisões de exército.

Oficiais da ativa também avaliam que Bolsonaro voltará a provocar e “esticar a corda”, testando os limites da Forças Armadas. Compõem um quadro polarizado e desfavorável ao governo a queda na popularidade, os quase 470 mil mortos na pandemia, a CPI da Covid, investigações sobre ministros e filhos do presidente e a mira do Tribunal de Contas da União (TCU) no “tratoraço”, esquema de compra de votos no Congresso revelado pelo Estadão.

Para o general reformado do Exército Paulo Chagas, a interferência de Bolsonaro serve de “estímulo e de garantia para que outros fatos, muito mais graves, venham a acontecer”. “A ausência de, pelo menos, uma advertência abre perigoso precedente que poderá, em futuro não distante, ser usado para estimular e justificar a entrada, em facções, do debate político e da indisciplina para o interior dos quartéis”, escreveu.

Do outro lado da Praça dos Três Poderes, ministros do Supremo Tribunal Federal acompanham os desdobramentos com preocupação e conversam com congressistas para avaliar as consequências da crise. Reservadamente, um ministro confidenciou a parlamentares o temor de uma “desinstitucionalização geral”, com reflexos no comportamento de policiais militares. Para ele, apesar do episódio desgastante, o Exército ainda “não patrocinou nenhuma bagunça” no País, como houve com excessos de violência e motins nas PMS nos últimos dias.

O presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-al), tentou minimizar a subserviência do Exército. Ele disse a interlocutores que Bolsonaro se sente muito credor de Pazuello. O pensamento de Lira, porém, está desconectado com o do vicepresidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), que criticou a decisão do comandante. 

Final de carreira

“Não é justo transferir para o Exército a responsabilidade de julgar um incidente de natureza política insignificante para a instituição. O Pazuello é um militar em final de carreira, que foi empregado em cargo político e não representa a Força.”

Maynard de Santa Rosa

General da Reserva