O Globo, n. 32803, 30/05/2023. Mundo, p. 17

Afagos contestados

Alice Cravo
Eliane Oliveira
Marina Gonçalves



Ao receber ontem Nicolás Maduro em visita oficial a Brasília com pompa, circunstância e elogios, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva optou pela reabilitação do líder venezuelano, criticado por organismos internacionais, ONGs e pela própria ONU por conduzir um regime ditatorial que sufoca a democracia e as liberdades no país. As críticas exacerbadas do brasileiro aos EUA pelo bloqueio econômico à Venezuela —afirmando que as sanções econômicas são “pior do que uma guerra” —e sua classificação de “narrativas” para as acusações de que o país de Maduro não vive sob um regime democrático tiveram repercussão negativa na oposição, dentro do próprio governo, nas redes sociais e foram criticadas por analistas ouvidos pelo GLOBO.

Abusos de direitos humanos

A avaliação geral é de que Lula errou no tom, ao passar uma imagem condescendente com o regime chavista, que lidera um país que sofre com a falta de eleições livres, abusos de direitos humanos, graves problemas econômicos que tiveram origem antes do bloqueio americano e milhões de refugiados pelo mundo.

Os elogios de Lula a Maduro vão de encontro ao que afirmam ONGs e organismos internacionais e ao seu discurso de campanha, pautado por uma forte defesa da democracia escorada em uma frente ampla de partidos. Dados da Anistia Internacional e investigação da ONU mostram que o governo venezuelano viola os direitos humanos e é suspeito de crimes contra a Humanidade. Segundo essas entidades, as agressões a ativistas de direitos humanos, jornalistas e líderes indígenas são constantes. Estima-se que há ao menos 300 presos políticos no país.

—Maduro não tem dólar para pagar suas importações. É culpa dele? Não. É culpa dos EUA, que fizeram um bloqueio extremamente exagerado. Sempre acho que o bloqueio é pior do que uma guerra. Na guerra, normalmente, morre soldado que está em batalha. Mas o bloqueio mata criança. Mata mulheres, mata pessoas que não têm nada a ver com a disputa ideológica em jogo —afirmou Lula em declaração conjunta à imprensa ao lado de Maduro, após recebêlo com pompa, com direito a subida da rampa do Planalto, na véspera de uma reunião de líderes sul-americanos em Brasília hoje.

Os EUA aliviaram parcialmente as sanções às exportações de petróleo venezuelano no ano passado após a invasão da Ucrânia pela Rússia. Em abril deste ano, o vice-conselheiro de Segurança Nacional americano, Jon Finer, disse que o governo de Joe Biden está preparado para suspender gradualmente todas as sanções, caso o país avance para realizar eleições justas no ano que vem. Desde 2019, cerca de US$ 3 bilhões (R$ 15 bilhões) do país estão congelados em bancos do Reino Unido, EUA, Portugal e França.

Para Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, dizer que as sanções dos EUA contra a Venezuela são a principal e única razão pela crise econômica do país é uma leitura “enviesada e simplista”.

—É basicamente a repetição da narrativa oficial, que é claramente incorreta, já que as sanções tiveram início em 2016 quando a Venezuela já se encontrava em uma situação muito complicada economicamente falando.

Lula afirmou que a visita de Maduro ao país é um “momento histórico” e que o Brasil recuperou o direito de fazer “política com seriedade” ao abrir um canal de diálogo com a Venezuela. Durante o encontro, Lula também afirmou que era difícil “conceber” que o Brasil tenha ficado tantos anos sem diálogo com a Venezuela e que achava a coisa “mais absurda do mundo” o não reconhecimento de Maduro como presidente por aqueles que “defendem a democracia” —em referência ao reconhecimento do deputado opositor Juan Guaidó como presidente interino por mais de 50 países, inclusive o Brasil, após uma vitória eleitoral do líder chavista em eleições tidas como fraudulentas.

Apoiado por Maduro, Lula chamou de “narrativas” as acusações de que há uma ditadura no país.

—O Maduro sabe a narrativa que construíram contra a Venezuela durante tanto tempo, essa narrativa durante muitos anos o [assessor especial da Presidência e ex-chanceler] Celso Amorim andava pelo mundo explicando que não era do jeito que as pessoas diziam que era —afirmou.

Críticas até no governo

As falas de Lula foram criticadas pela oposição, com o partido Novo emitindo uma nota de repúdio e parlamentares como os senadores Sergio Moro (União/PR) e Flávio Bolsonaro (PL/RJ) fazendo condenações no Twitter. Segundo a colunista do GLOBO Bela Megale, mesmo dentro do governo o presidente Lula sofreu críticas, por avaliação de que “exagerou” nos gestos de apoio a Maduro ao classificar de “narrativa” as acusações de que a Venezuela vive sob uma ditadura e tachar a visita de “momento histórico”.

Já o Twitter registrou, até a noite de ontem, cerca de 260 mil postagens em português que mencionavam Maduro, segundo um levantamento realizado pela consultoria Arquimedes. Segundo a análise, 81% das publicações se opunham à visita de Maduro.

Para os analistas ouvidos pelo GLOBO, Lula repetiu um comportamento já adotado na crítica a europeus e americanos na guerra na Ucrânia —ao tentar se mostrar isento e tentar se habilitar como mediador, o presidente brasileiro disse que eles eram responsáveis pelo alongamento do conflito, o que gerou respostas da Casa Branca e do bloco europeu.

Para Juanita Goebertus, diretora para as Américas da Human Rights Watch, com as declarações, Lula “lamentavelmente perdeu a oportunidade de exercer seu papel como mediador da crise venezuelana”.

—Todos os esforços diplomáticos para defender o Estado de Direito, os direitos humanos, de recuperar relações bilaterais, são bem vindos. Mas, em nenhum cenário as violações de direitos humanos e os crimes de lesa-Humanidade cometidos por Maduro e documentados por uma Missão de Investigação da ONU são narrativas construídas, mas uma realidade —pontua.

—Negar essa realidade na Venezuela seria quase compactuar com esses crimes.

‘Desserviço à democracia’

O presidente brasileiro também foi criticado por chamar de “narrativas” as acusações de que há uma ditadura na Venezuela.

— Lula tem razão ao dizer que há muito preconceito em relação à Venezuela. Mas também deveria admitir que há muitas verdades incômodas: graves violações aos direitos humanos, eleições fraudulentas e crescente autoritarismo para citar apenas algumas —afirma Daniel Zovatto, do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (Idea).

— [Ele] Ignora completamente a questão central da violação dos direitos humanos e a investigação atualmente em andamento pelo Tribunal Penal Internacional por crimes contra a Humanidade.

Já a jornalista venezuelana Luz Mely Reyes acredita que o presidente Lula prestou um “desserviço à democracia no continente” com o tom adotado em seu discurso:

—Em um país onde todos se uniram para tentar salvar a democracia diante do crescimento do populismo, me pergunto como Lula pode dar um aval a um governo que tem tantos sinais de violação de direitos humanos.