O Estado de S. Paulo, n. 46612, 31/05/2021. Espaço Aberto, p. A2
O futuro do Mercosul
Alberto do Amaral Junior
O Mercosul acaba de comemorar três decênios de existência. É tempo de preservar
as conquistas acumuladas: a paz, o aumento do comércio e do intercâmbio entre
nossas nações. Cabe, principalmente, refletir sobre o caminho do bloco nos
próximos anos.
O
Mercosul conhece uma profunda crise de identidade, que se traduz na dúvida
sobre o sentido da integração e reverbera na definição de metas a serem
perseguidas. As difíceis relações entre Brasília e Buenos Aires, a indisposição
argentina de celebrar novos acordos de livre-comércio, os desentendimentos
sobre a tarifa externa comum e a reivindicação do Uruguai de liberdade para
participar de acordos comerciais tornam o presente instável e o futuro incerto.
Afora as questões pessoais que os separam, os presidentes Jair Bolsonaro e
Alberto Fernández demonstram ter visões diferentes sobre o Mercosul, que ocupou
papel secundário desde o início do atual governo brasileiro.
No
plano econômico, a China tornou-se parceira fundamental para os países do
Mercosul. O mercado chinês é o principal destino das exportações brasileiras,
uruguaias e argentinas. A China efetua grandes investimentos em infraestrutura
na Argentina, particularmente na Patagônia. Os chineses estão presentes em
vários setores da economia brasileira e tudo indica que a cooperação existente
vá ampliar-se em outros campos, em especial em inovação e biotecnologia.
A
relevância chinesa na América Latina é um dos elementos da competição sinoamericana, que se caracteriza pela interdependência e
baixa polaridade. A América Latina deixa de ser uma área de interesse,
exportadora de matéria-prima e alimentos, para se converter numa zona
estratégica, o que configura novos espaços diplomáticos de contornos ainda indefinidos.
Os
desafios do Mercosul são variados e complexos. Revigorá-lo requer animus societatis, ou seja, a vontade inequívoca dos
países-membros de superarem os problemas capazes de debilitar a integração. O
animus societatis pressupõe que a integração seja um
imperativo que permita buscar meios de responder aos desafios comuns, para os
quais a cooperação é indispensável.
Félix
Peña, experiente diplomata argentino, afirma que os
processos de integração têm uma dimensão existencial e outra metodológica. A
primeira resume-se nas razões que motivam os Estados a agir conjuntamente. A
segunda revela-se no modo como agem para realizar objetivos compartilhados. A
dimensão metodológica deve alterar-se em conformidade com as mudanças globais,
nacionais e regionais.
No
caso do Mercosul, as mudanças necessitam de aprovação de todos os governos.
Necessitam, ainda, em nível doméstico, do assentimento dos Congressos
nacionais, processo que exige a formação de maioria parlamentar. Nenhum Estado,
até agora, expressou o desejo de deixar o Mercosul. Logo, a questão principal
diz respeito ao método para a ação conjunta (working together).
Após
30 anos, os países do Mercosul e o mundo são muito diferentes do que eram no
início da década de 90 do século passado. Na qualidade de potência agrícola,
não é aceitável que o Mercosul dispense a existência de uma autoridade regional
para cuidar desta área e das questões sanitárias correlatas. É notório o
dispêndio de recursos com a manutenção de aparatos institucionais similares nos
países para executarem tarefas idênticas.
O
embaixador José Botafogo Gonçalves salienta que a hidrovia abrangendo os Rios
Paraguai e Paraná, de natureza internacional, seja administrada conjuntamente.
Conviria, também, criar uma autoridade regional incumbida de tratar dos temas
ambientais, como a redução das geleiras e da biodiversidade na Argentina, os
incêndios florestais no Brasil e no Paraguai, além dos imensos danos que
poderão sofrer a riquíssima variedade da fauna e da flora brasileiras. Os
investimentos em infraestrutura, rodovias, ferrovias e portos, com largo uso
das novas tecnologias, como drones e inteligência
artificial, são igualmente imprescindíveis.
Essas
são medidas fundamentais que precedem a discussão sobre a diminuição ou
eliminação da tarifa externa comum. Analogamente, acordos de alcance parcial,
relativos a setores industriais específicos, imprimiriam maior flexibilidade ao
bloco e potencializariam o crescimento econômico. É preciso adotar políticas em
vários níveis, de tal sorte que o Mercosul se adapte às circunstâncias dos membros
e encare a nova realidade internacional. Nessa lógica, a reivindicação
paraguaia de acesso ao mar deve ser atendida e facilitada, sem prejuízo das
soberanias nacionais.
É
crucial, entretanto, para consumar essas transformações, o entendimento entre o
Brasil e a Argentina, que devem exercer papel de liderança. Sem esse requisito
o Mercosul não terá condições de criar novas veredas de oportunidades no sertão
de um mundo no qual a revolução tecnológica abreviou as mudanças sociais,
políticas e econômicas.
Professor
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)