O Globo, n. 32804, 31/05/2023. Política, p. 04

Câmara aprova texto que limita demarcação de terras indígenas

Lauriberto Pompeu
Gabriel Sabóia
Camila Turtelli
Dimitrius Dantas



Com o apoio de partidos da base governista, a Câmara dos Deputados impôs ontem uma nova derrota ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao aprovar o projeto que cria o marco temporal para a demarcação de terras indígenas. O resultado em plenário começou a ser desenhado na semana passada, com a aprovação de um dispositivo que acelerou a tramitação do texto, e escancara ainda mais a fragilidade do Palácio Planalto nas votações do Legislativo.

O marco temporal foi aprovado com 283 votos favoráveis e 155 contrários. MDB, PSD e União Brasil, partidos que indicaram três ministros, cada, deram 95 votos de apoio o texto. Apenas 18 deputados dessas siglas se posicionaram como queria o governo. Isso significa que, entre os parlamentares das três legendas que compareceram, 84% ignoraram o Planalto. Já o PT entregou apoio total: os 65 deputados que foram à sessão votaram contra a proposta.

O resultado engrossa a lista de reveses de Lula no Congresso. No início do mês, no primeiro alerta sobre a instabilidade da base, a Câmara derrubou trechos de um decreto presidencial que mudava o marco do saneamento. A medida pretendida pelo petista irritou parlamentares de diferentes partidos, pois mexia em itens que haviam sido aprovados no Congresso. Na semana passada, em novo sinal de fragilidade, foi aprovado em comissão mista o relatório que muda a configuração dos ministérios e esvazia pastas, como a do Meio Ambiente — o texto estava na pauta do plenário, mas ainda não havia sido votado até o fechamento desta edição. Ontem, a derrota foi ainda mais simbólica, já que se deu numa seara considerada cara à esquerda.

O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), orientou os aliados a votarem contra o marco temporal e defendeu o adiamento da discussão. Momentos antes de chegar ao plenário, no entanto, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que o Planalto não deu garantia de que iria cumprir o trato. Deputados governistas chegaram a pleitear que a MP dos Ministérios fosse analisada antes do marco temporal, sem sucesso:

—Esperamos o governo até agora. Ontem, ainda houve pedido para construir um acordo, que previa que a ação (no STF) fosse retirada (de pauta) e se discutisse uma saída. Ninguém do governo que propôs o acordo voltou para dizer se tinha andado ou não. Entendo que não andou.

A aprovação foi articulada por Lira e aliados dele. A celeridade dada a tramitação do projeto é uma reação a um julgamento do Supremo Tribunal Federal, que analisará na semana que vem um recurso para impedir o marco temporal, estabelecido por entendimento anterior do próprio tribunal. Ao aprovar o texto, Câmara tenta se antecipar para evitar que a Corte regulamente o assunto.

A previsão é que o ritmo seja mais lento no Senado. Segundo o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o texto deve passar por comissões antes de ir ao plenário. Ontem, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, esteve com Pacheco e pediu uma “redução de danos”.

O marco temporal estabelece que povos indígenas têm direito apenas às terras que já ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data da Constituição. O projeto também abre margem para contato com povos isolados caso haja “utilidade pública”, sem definir os critérios que definiram essa necessidade de uso. O texto afirma que o “usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional” e permite que sejam desenvolvidas atividades nas reservas sem que as comunidades sejam consultadas. Na visão de ambientalistas, desta forma, a proposta abre margem para garimpo, construção de estradas e de usinas hidrelétricas em terras indígenas.

— O projeto representa um genocídio legislado, porque vai afetar diretamente povos isolados. Autoriza acesso de terceiros em territórios onde vivem pessoas, povos que ainda não tiveram contato com a sociedade —disse Guajajara.

A tese do marco temporal se baseia em uma interpretação sobre o artigo 231 da Constituição, que diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Interpretações

Na visão dos defensores da proposta, ao utilizar o verbo no presente, “ocupam”, a Carta trata dos territórios ocupados naquela data. Argumentam que o marco é uma forma de garantir segurança jurídica a proprietários de terras, que poderiam ser desapropriados caso, futuramente, as terras fossem reivindicadas como territórios indígenas.

— É inaceitável que ainda prevaleça a insegurança jurídica e que pessoas de má-fé se utilizem de autodeclarações como indígena para tomar de maneira espúria a propriedade alheia —argumentou o relator do projeto, deputado Arthur Maia (União Brasil-BA).

Ambientalista e defensores da causa indígena, por outro lado, citam o parágrafo 1º do mesmo artigo como argumento contrário: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”, diz o trecho.

Os críticos ao projeto dizem que, ao estabelecer a data de 1988, a Câmara ignora o histórico de perseguição contra indígenas, em que muitas etnias precisaram deixar seus territórios para não serem dizimados. Assim, não ocupavam o local a que teriam direito na época.

Na prática, processos de demarcação em análise pelo governo poderão ser suspensos. Além disso, segundo especialistas, territórios já homologados poderão ser questionados judicialmente levando em conta o novo entendimento.

Atualmente, constam 764 áreas nos registros da Funai: 483 áreas se tratam de locais cujos processos de demarcação se encontram homologados ou regularizados, e 281 estão sob análise.