Correio Braziliense, n. 21441, 29/11/2021. Mundo, p. 11

Ômicron expõe acesso desigual à imunização

Rodrigo Craveiro


O alerta partiu da cientista que identificou a cepa ômicron e rastreou a variante do Sars-CoV-2 na África do Sul e em Botsuana: “Se não vacinarmos o continente africano, ninguém será capaz de dormir em segurança no resto do mundo”. Angelique Coetzee (leia entrevista), diretora da Associação Médica da África do Sul, também explicou ao Correio que as mutações do coronavírus ocorrem no organismo de pessoas com comprometimento imunológico e das não imunizadas. A desigualdade no acesso à vacina, aliada ao negacionismo, possibilitou que a ômicron surgisse na África e se espalhasse pelos cinco continentes do planeta. Ontem, dezenas de milhares de austríacos se manifestaram contra a obrigação de se imunizarem, em Graz e em Klagenfurt (sul).

A Holanda confirmou que 13 dos 61 passageiros da África do Sul que desembarcaram em Amsterdã na sexta-feira estão com a nova cepa. A Dinamarca detectou a ômicron em dois cidadãos procedentes da África do Sul. “Estamos numa corrida contra o relógio” para frear a nova variante, admitiu a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. O Reino Unido divulgou uma terceira ocorrência: um cidadão que não estaria mais em território britânico.

O Canadá anunciou dois casos — ambos de Ottawa, recém-chegados da Nigéria. Por sua vez, a Austrália notificou duas infecções em cidadãos que chegaram a Sydney do sul da África. Ontem, cientistas italianos produziram a primeira imagem tridimensional da ômicron e atestaram que a cepa tem mais mutações do que a delta (leia nesta página).

A iniquidade na taxa de imunização  impulsiona os contágios, na opinião de cientistas. Cerca de 54,1% da população mundial recebeu ao menos uma dose do fármaco contra a covid-19. A disparidade, no entanto, aparece em países de baixa renda, onde apenas 5,7% da população recebeu uma única aplicação da vacina.

Na África do Sul, 23,76% dos cidadãos completaram o ciclo de imunização. As estatísticas são ainda mais alarmantes na Nigéria (1,63%), na Etiópia (1,21%) e em Botsuana (19,58%), de acordo com o site Our world in data. Na sexta-feira, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez um apelo à comunidade internacional para que doe vacinas aos países mais pobres. “Esta pandemia não vai acabar até que tenhamos uma vacinação global”, disse o democrata.

Apelos

Coetzee advertiu sobre a capacidade de transmissibilidade da ômicron. “Na segunda-feira passada (22), a taxa de infecção pelo coronavírus na África do Sul era de 1%; hoje, está a 9,8%”, comentou. Em pronunciamento de 29 minutos à nação, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, afirmou que a identificação da nova cepa foi resultado do “excelente trabalho” dos cientistas e exortou a comunidade internacional a reverter, “imediata e urgentemente”, os “cientificamente injustificáveis” vetos à entrada de cidadãos procedentes do país.

Por meio de nota, a Organização Mundial da Saúde (OMS) defendeu como de “vital importância” que “as desigualdades no acesso às vacinas sejam tratadas com urgência para garantir que grupos vulneráveis (...) recebam sua primeira e sua segunda doses”. Também pediu a suspensão das restrições às viagens para o sul da África.

Professor de doenças infecciosas na Universidade da Cidade do Cabo, Marc Mendelson afirmou ao Correio que a desigualdade no acesso às vacinas é um fator contribuidor para o surgimento da ômicron. “Não se trata da única razão, no entanto. Quanto mais infecções você permitir — baixas taxas de vacinação, falta do uso de máscaras, desrespeito ao distanciamento social —, maior a replicação viral e mais chances da ocorrência de mutações que darão ao vírus uma vantagem de sobrevivência”, advertiu. “O cerne da questão é a seleção natural darwiniana. No momento, o vírus está vencendo.”

De acordo com Mendelson, a capacidade de realizar mutações indica que o coronavírus busca aumentar a transmissibilidade ou a habilidade de enganar o sistema imunológico. “O número de mutações na ômicron — algumas novas, algumas velhas — aumenta a chance de que uma ou ambas coisas ocorram. Nesse momento, simplesmente não sabemos. O mundo deve permanecer em alerta, mas continuar a promover a imunização e as medidas de prevenção.”

Diretor do Departamento de Virologia Médica da Universidade Stellenbosch (Cidade do Cabo), Wolfgang Preiser disse que o problema é a falta de adesão à imunização na África do Sul. Ele lembra que o país tem vacina para atender à população adulta. O biólogo evolucionário Tom Wenseleers, professor da Universidade Católica de Leuven (Bélgica), considera significativo que a ômicron tenha surgido em uma população com cobertura vacinal de 24%. “Não apenas a iniquidade da vacina é responsável pela baixa taxa de imunização na África do Sul. A desinformação e o fanatismo religioso levaram à hesitação em relação à vacina. Este fenômeno também é reflexo das disparidades socioeconômicas e educacionais.”