O Estado de S. Paulo, n. 46581, 30/04/2021. Metrópole, p. A10

Brasil ultrapassa 400 mil mortos pela covid, com risco de uma terceira onda

Fabiana Cambricoli


O Brasil ultrapassou a marca de 400 mil mortos pela covid19 com um patamar ainda alto de óbitos diários e índices de mobilidade crescentes, o que, para especialistas, aumenta o risco de o País ter uma terceira onda da pandemia antes de atingir a imunidade de rebanho pela vacinação. Com o registro de 3.074 novos óbitos em 24 horas, segundo o levantamento do consórcio de veículos de imprensa, o País já acumulava ontem às 20 horas 401.417 vítimas da doença.

Para cientistas especializados em epidemiologia e virologia ouvidos pelo Estadão, a reabertura precipitada das atividades econômicas antes de uma queda sustentada de casos, internações e mortes favorece que as taxas de transmissão voltem a crescer, com risco maior do surgimento de novas variantes de preocupação. Com isso, o intervalo entre a segunda e uma eventual terceira onda seria menor do que o observado entre o primeiro e o segundo picos.

Estados como São Paulo, Rio e Rio Grande do Sul autorizaram nas últimas semanas a reabertura de serviços como bares, restaurantes e salões de beleza, mesmo com taxas de ocupação hospitalar consideradas críticas (a partir de 80%). Segundo o último boletim do Observatório Covid-19, da Fiocruz, 21 unidades da federação têm taxa de ocupação igual ou superior a 80%. Em dez delas, o índice ultrapassa os 90%. “Nos níveis em que o vírus circula hoje, esse período entre picos pode ser abreviado, sim. Já vimos esse efeito em algumas localidades na virada do ano. A circulação em níveis altos favorece isso”, diz o virologista Fernando Spilki, coordenador da Rede Coronaômica, força-tarefa de laboratórios que faz o monitoramento genético de novas cepas.

Em 2020, após o pico da primeira onda, o número de casos e mortes começou a cair entre julho e agosto para ter novo aumento em novembro. O surgimento de uma nova cepa do vírus (P.1) em Manaus colapsou o sistema amazonense em janeiro e provocou a mesma catástrofe em quase todos os Estados do País entre fevereiro e março. Os últimos dois meses foram os piores da pandemia até agora. No ano passado, o País demorou quase cinco meses para atingir os primeiros 100 mil mortos, outros cinco meses para chegar aos 200 mil e dois meses e meio para alcançar as 300 mil vítimas. A marca dos 400 mil óbitos veio 36 dias depois.

E os dados dos últimos dias indicam que a queda das internações e mortes iniciada há três semanas já apresenta estagnação. O mais provável agora é que os índices se estabilizem em níveis elevados, com 2 mil a 3 mil mortes diárias, ou voltem a crescer, conforme projeta o estatístico e pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Leonardo Bastos. “Esse aumento de mobilidade e contato entre as pessoas pode levar a uma manutenção do número de hospitalizações em um patamar super alto, o que é péssimo, porque sobrecarrega o sistema de saúde.”

Rio. Como exemplo de como uma nova variante pode provocar grandes surtos em um intervalo curto de tempo, o especialista da Fiocruz cita o caso do Rio. Ele considera que o Estado já viveu três ondas. Além da primeira, entre maio e junho de 2020, os municípios fluminenses sofreram um segundo pico em dezembro, com o surgimento da variante P.2, e uma nova alta em março deste ano, com a emergência da P.1. “Talvez a próxima onda não seja síncrona em todo o País, mas poderemos ter surtos em diferentes locais”, opina Bastos.

Para Spilki, o aumento nas taxas de mobilidade e relaxamento das medidas de proteção não só elevam as taxas de transmissão como facilita o surgimento de variantes mais transmissíveis ou letais. “A variante P.1 e outras não são entes estáticos, podem evoluir e se adaptar a novos cenários com o espaço que vem sendo dado para novos casos”, diz ele. Desde novembro, relata o especialista, já foram identificadas oito novas variantes originadas no Brasil.

O epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), também destaca que, mesmo com a queda de casos e mortes nas últimas três semanas, o Brasil está longe de vislumbrar um controle da pandemia. “Houve arrefecimento do número de casos e mortes pelas medidas de distanciamento social realizadas às duras custas. No momento, o retorno às outras fases de distanciamento é preocupante, principalmente na próxima semana, com aumento da procura de lojas pelo Dia das Mães e também pela frequência maior de encontros sem a proteção necessária, como já aconteceu no Natal.”

Vacina. “A vacinação segue lenta, com interrupções e falhas de esquema, como falta de doses para reforço, o que é mais um complicador no que tange a frear a disseminação e evolução de variantes”, comenta o virologista. Para os cientistas, as medidas necessárias para minimizar o risco de um novo tsunami de casos e mortes são as mesmas preconizadas desde o início da pandemia: uso de máscara (se possível, PFF2), distanciamento social, preferência por ambientes ventilados, rastreamento e isolamento de pessoas infectadas, além da aceleração da campanha de vacinação, que esbarra na escassez de doses.

Eles destacam que, embora a comunidade científica alerte há meses para quais medidas funcionam para barrar o coronavírus, o País segue sendo vítima de posturas negligentes do governo federal e de algumas administrações estaduais e municipais. Mesmo durante o colapso do sistema de saúde e o agravamento da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro continua circulando sem máscara, provocando aglomerações e promovendo remédios sem eficácia contra a covid. Em várias ocasiões, minimizou o número de vítimas da doença com frases como “E daí?” e “Não sou coveiro”.

Seu governo, um dos alvos da CPI da Covid, também se mantém contrário à adoção de quarentenas como meio de barrar a transmissão e é acusado de lentidão no fechamento de contratos com fabricantes de vacinas, o que impede que a campanha de imunização deslanche. “Neste cenário, não vejo possibilidade de não termos mais ondas. As medidas de controle são as mesmas, mas, lamentavelmente, não estão sendo aplicadas”, afirma Spilki.

Receita errada

"Agora era a hora de segurar mais, fazer uma reabertura mais lenta e planejada. Do jeito que está, a questão não é se vai acontecer uma nova onda, mas quando."

Leonardo Bastos

Estatístico da Fiocruz

Pontos-Chave

Surgimento de uma nova cepa foi agravante

• Primeiro ano

Em 2020, após o pico da primeira onda, o número de casos e mortes começou a cair entre julho e agosto para ter novo aumento em novembro.

• Em 2021

O surgimento da cepa P.1 em Manaus colapsou o sistema em janeiro. A variante se espalhou pelo País. Os últimos dois meses foram os piores da pandemia.

• Futuro

Os especialistas em saúde pública acham improvável que a imunização consiga contemplar a maioria da população antes de uma nova onda.