O Globo, n. 31600, 12/02/2020. País, p. 6

Verbas com padrinhos

Natália Portinari
Naira Trindade
Daniel Gullino
Gustavo Maia
Geralda Doca


Deputados de primeiro mandato, que não tinham direito a emendas parlamentares em 2019, usaram suas redes sociais para divulgara liberação de R$ 1,27 bilhão em verbas “extra orçamentárias” pelo governo Jair Bolsonaro desde ametade do ano passado. Sãop agamentos feitos principalmente pelos Ministérios da Saúde, Educação e Agricultura. O governo usou esse tipo de repasse para municípios indicados pelos deputados durante negociações para aprovação de matérias no Congresso. À época, o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) respondia pela articulação política.

Alei exige que emendas parlamentares sejam pagas respeitando a proporção no Congresso de cada partido — portanto, não é possível privilegiar aliados, uma vez que todos têm direito a uma quantia exata no Orçamento. Pagamentos adicionais não são regulamentados em lei. Ontem, o governo e o Congresso chegaram a um acordo sobre regras da execução de emendas em 2020, o que, segundo parlamentares, fará com que este expediente não seja mais necessário.

O levantamento do GLOBO foi feito com base nas redes sociais dos 252 deputados novatos. Eles não tiveram emendas no Orçamento de 2019, já que não participaram de sua elaboração em 2018. Destes, 112 anunciaram liberações de recursos para prefeituras, o que alguns classificam como “verba extraorçamentária”. Os deputados que mais anunciaram esse tipo de recurso foram de PSL, Republicanos, PSD, MDB e PL.

A Secretaria de Governo, os ministérios da Saúde, da Agricultura e da Educação foram procurados pela reportagem. O Ministério da Agricultura nega que tenha liberado verbas extras a deputados. A Saúde diz ter feito liberações de recursos de “forma indistinta” e que fez “amplo debate” com deputados, senadores, governadores, prefeitos e entidades representativas. Os demais não responderam.

O valor apurado é apenas uma parte das liberações porque, em alguns casos, não é possível saber quanto o deputado indicou. O vicelíder de governo Daniel Silveira (PSL-RJ), por exemplo, anunciou R$ 29 milhões em “emendas + recursos extras”.

Ex-líder do PSL, Delegado Waldir (GO) diz que a distribuição da verba foi de acordo com “a cara do freguês” e que quem “enfiou a faca no pescoço, como PP e PL”, recebeu mais.

— Foram R$ 40 milhões para quem votasse pela reforma da Previdência. Mas o governo é caloteiro, é estelionatário. O acordo era R$ 20 milhões em 2019 e R$ 20 milhões em 2020, mas há deputados que receberam quantias irrisórias e outros nem receberam nada — diz o deputado, rompido com o governo.

Mais beneficiados

De acordo com o levantamento, o parlamentar mais beneficiado foi José Nelto (Podemos-GO), que anunciou o envio de R$ 86 milhões a 80 prefeituras. Líderes de partido, como Nelto, tiveram direito a uma soma maior. Apesar de ter anunciado esses valores em sua rede social, o deputado disse ao GLOBO que conseguiu apenas R$ 24 milhões.

Terceiro lugar no ranking, com R$ 49 milhões, Valdevan Noventa (PSC-SE) justificou ter atuado principalmente junto aos ministérios de Saúde, Infraestrutura e Agricultura para levar verba a seu estado. Deputado da bancada evangélica, votou contra a reforma da Previdência no primeiro turno, mas diz ter apoiado o governo em outras matérias.

Vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (SP), que ficou em quinto lugar no ranking, diz que obteve os R$ 35 milhões em verbas que anunciou não só pelas indicações de 2019 — que devem resultar em R$ 20 milhões, na sua estimativa — mas também por acordos prévios, já que é presidente do Republicanos e foi ministro de Michel Temer.

Deputados de partidos de oposição, como PSOL, PT e PCdoB, não anunciaram ter recebido esse tipo de recursos. Há, porém, casos de parlamentares de partidos de esquerda que contrariaram as indicações de suas legendas e apoiaram a reforma, como Emidinho Madeira (PSB-MG) e Jesus Sérgio (PDT-AC), e conseguiram liberar valores, R$ 2,7 milhões e R$ 9 milhões, respectivamente.

Alguns beneficiados viajaram a diversas cidades para anunciar os repasses. A deputada Aline Sleutjes (PSL), por exemplo, conseguiu liberar R$ 2 milhões para a construção de uma ponte no norte do Paraná e, em suas redes sociais, passou a se intitular “Deputada da Ponte”.

Em uma reunião no fim do ano passado, o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, prometeu quitar R$ 16 milhões por deputado até o fim do ano e prestou contas do quanto já havia sido pago, mostrando planilhas. Ramos assumiu a articulação política em julho, com esse passivo. O GLOBO pediu o controle da quantia de recursos para a Secretaria de Governo, via Lei de Acesso à Informação. O órgão negou a existência do documento.

Segundo a previsão dos deputados, a verba prometida que não foi empenhada em 2019 é dada como perdida, o que vem provocando frustração entre os parlamentares.

Governo e Congresso fecham acordo sobre emendas

O governo federal e líderes do Congresso entraram em um acordo ontem para a derrubada de um veto presidencial em um projeto que mudou regras para a execução do Orçamento de 2020. Os parlamentares irão assegurar seu direito de indicar a prioridade para a execução das emendas, mas aceitaram que não haverá um prazo de 90 dias para cumprir a ordem e que o gestor não será punido caso esse prazo não seja respeitado. A votação acontecerá hoje à tarde.

O acordo foi fechado em uma reunião ontem entre do ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, com os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEMAP). Os três anunciaram o acerto após a cerimônia de posse do ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) no Palácio do Planalto.

O trecho que será reestabelecido pelos parlamentos determina que “a execução das programações das emendas deverá observar as indicações de beneficiários e a ordem de prioridades feitas pelos respectivos autores”.

— O Congresso Nacional, alinhado com o governo federal, vai derrubar o veto presidencial do caput do artigo, e é isso vai assegurar a impositividade do Orçamento — afirmou Alcolumbre.

Maia disse que a expectativa é que a análise do veto, marcada para hoje, será “tranquila”. De acordo com ele, o acordo mostra a “unidade” e a “harmonia” entre governo federal e Congresso:

— Foi tudo acordado. Importante que amanhã nós teremos uma votação tranquila, onde o governo e o Parlamento votarão o mesmo encaminhamento, mostrando unidade e harmonia no trabalho nesse início de ano.

Ciente que teria dificuldades de manter o veto na integralidade, o governo passou a negociar o acordo de forma efetiva no final de semana. O tema foi tratado em uma conversa no domingo no Palácio da Alvorada entre o presidente Jair Bolsonaro e Maia e também em uma reunião no mesmo dia entre Ramos e Alcolumbre. O Executivo abriu mão de exercer a prioridade sobre a ordem de execuções das emendas e negociou com o Congresso para que o prazo e a possibilidade de punição aos gestores fosse retirada. Os parlamentares concordaram com o acordo, especialmente por entender que caso a prioridade dada pelo Congresso não seja cumprida já há instrumentos legais para questionar os gestores.

Ontem, também foi acertado que o governo irá enviar um Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN) transferindo aproximadamente R$ 11 bilhões do Orçamento para despesas discricionárias dos ministérios. De acordo com a Secretaria de Governo, a proposta do governo já previa esses R$ 11 bilhões para os ministérios, mas uma alteração foi feita e os recursos passaram para o “carimbo” de emenda de relator, e sua utilização ficou sujeita à autorização do Congresso. O relator do Orçamento, Domingos Neto (PSD-CE), participou do acordo e abriu mão da sua prioridade.

As mudanças nas execuções das emendas parlamentares

Como era:

Até agora, o governo federal tinha a decisão sobre a ordem de execução das emendas feitas pelos parlamentares. Assim, se um congressista destinasse recursos para Saúde, Educação e Agricultura, por exemplo, cabia ao Executivo decidir qual emenda seria executada primeiro de acordo com o que o governo considerava como de maior necessidade.

Como fica:

A mudança que será aprovada pelo Congresso com a derrubada do veto presidencial fará com que cada parlamentar tenha o direito de decidir qual a ordem de execução das suas emendas ao Orçamento. Eles concordaram com o governo em não fixar um prazo para que a emenda seja empenhada nem previsão de punição ao gestor que não cumprir a ordem.