O Globo, n. 31595, 07/02/2020. Sociedade, p. 31

Morre o 'descobridor' do novo vírus



Li Wenliang dominou o noticiário duas vezes. A primeira, em dezembro, quando foi acusado pelo governo chinês de disseminar pânico ao sugerir que um novo vírus acometia pacientes em um hospital em Wuhan — agora conhecido como 2019-nCoV, o novo coronavírus. A segunda, na noite de ontem, quando sua morte foi confirmada, após uma onda de boatos e diversas manifestações de apoio nas redes sociais.

Ontem, em entrevista coletiva, o diretor executivo de Emergências de Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), Mike Ryan, manifestou condolências pela morte de Li. A rede social chinesa Weibo foi inundada por mensagens de apoio ao médico, visto como injustiçado por ter o trabalho desprezado pelo governo.

Horas depois, no entanto, o Hospital Central de Wuhan informou que Li estava vivo, em estado crítico, internado na UTI. Os internautas despertaram com a revelação. Um deles escreveu que não podia dormir, pois esperava “por um milagre on-line”. A própria OMS, que postou no Twitter uma homenagem a Li, reconheceu depois que “não tinha informações” sobre seu estado de saúde.

A vigília não durou muito tempo. O hospital confirmou a morte de Li na madrugada.

‘Doença misteriosa’

Em 30 de dezembro, Li, um oftalmologista de 34 anos, divulgou a outros médicos, em um bate-papo online, ocaso de sete pacientes em quarentena na emergência do Hospital de Wuhan, acometidos por uma “doença misteriosa”, semelhante à Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), que matou cerca de 800 pessoas no mundo entre 2002 e 2003.

Ele chegou perto: identificou outro coronavírus, agora batizado 2019-nCoV — que, até ontem, havia provocado 636 mortes na China.

O Brasil monitora nove casos suspeitos para coronavírus e, ontem, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, se reuniu com secretários estaduais e municipais para detalhar o plano de contingência contra o vírus. No fim do dia, o presidente Jair Bolsonaro sancionou o projeto de lei que regula medidas contra o coronavírus, entre elas a quarentena a que serão submetidos os brasileiros vindos de Wuhan.

A interpretação de Li, porém, não agradou a polícia. Em 3 de janeiro, ele foi interrogado e obrigado a assinar uma declaração que definia sua advertência sobre o novo vírus como um boato infundado. Para o governo, Li cometera “comportamento ilegal”. A polícia chinesa também anunciou que estava investigando oito pessoas por espalharem rumores sobre o novo surto, “evitável e controlável”.

Multiplicação de casos

Não foi o que mostraram as filas nos hospitais. O número de pacientes com “pneumonias de causas não identificadas”, como eram chamadas antes da “descoberta” do coronavírus, se multiplicou desde o início de dezembro. A OMS criticou a China por demorar a noticiar a dimensão do surto.

A decisão de isolar Wuhan, epicentro do coronavírus, foi tomada somente em 23 de janeiro, quando mais de 5 milhões de habitantes já haviam deixado a cidade para comemorar o Ano Novo Chinês em outras regiões do país e no exterior.

Li tornou-se uma voz incômoda às autoridades. No último dia 27, o prefeito Zhou Xianwang reconheceu ter omitido informações sobre o patógeno. Ele e o secretário local do Partido Comunista, Ma Guoqiang, ofereceram suas renúncias. A epidemia já é considerada a maior crise do governo do presidente Xi Jinping desde que assumiu o poder, em 2012.

— As autoridades deveriam ter fornecido informações sobre a epidemia mais cedo. Precisávamos de mais abertura e transparência — analisou Li, em janeiro, em entrevista ao “New York Times”.

As críticas do médico ecoaram nas redes sociais chinesas, fortemente controladas pelo governo. Os internautas atacaram a decisão de Pequim de investigar os “boatos” sobre o coronavírus, em vez de reconhecera epidemia e tomar medidas preventivas.

“Seria melhor prevenir e controlar o novo vírus se o público acreditasse no ‘boato’ da época e começasse a usar máscaras, tomasse medidas sanitárias e evitasse o mercado de animais silvestres”, protestou um usuário do Weibo, referindo-se ao mercado de frutos do mar e animais silvestres de Wuhan, onde foram identificados os primeiros registros do vírus.

E o coronavírus se expandiu de tal forma que atingiu seu “descobridor”. No último dia 1º, Li anunciou que contraiu o patógeno quando tratava do glaucoma de uma mulher que não sabia estar contaminada. Na última semana, ele parecia esperançoso em superar a doença e voltar ao trabalho.

— Depois de me recuperar, quero voltar para a linha de frente — revelou ao jornal chinês “Southern Metro polis Daily”.

— A epidemia ainda está se espalhando, e eu não quero ser um desertor.

Li deixa um filho e a mulher, grávida. Os pais do médico estão internados com febre e também teriam contraído o vírus.