O Globo, n. 31593, 05/02/2020. Mundo, p. 29

Em tom apoteótico, Trump mira trabalhadores


O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ostentou um tom apoteótico no terceiro e último discurso sobre o Estado da União de seu primeiro mandato, proferido na noite desta terça-feira em Washington, em clima de forte oposição entre os dois partidos. O ambiente de animosidade ficou explícito. No início, o presidente se recusou a apertar a mão da presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi; no fim, a líder democrata rasgou uma cópia do discurso do republicano.

O presidente deu o título de “O grande retorno americano” à fala que transmitiu no tradicional balanço anual, que contou com a presença do líder da oposição da Venezuela, Juan Guaidó, como convidado. Em lógica de campanha, mirou a classe trabalhadora, e lançou um novo slogan — “o boom do colarinho azul”.

— Há três anos, lançamos o grande retorno americano. Hoje à noite, compartilho os incríveis resultados. Os empregos estão explodindo, os salários estão cada vez mais altos, a pobreza está despencando, o crime está caindo, a confiança está crescendo, e nosso país está prosperando e é altamente respeitado de novo — afirmou, na abertura. — O estado de nossa União é mais forte do que nunca!

A atmosfera na Câmara dos Deputados, onde o Congresso se reuniu em sessão conjunta, ao lado de outros convidados, foi comparada por muitos analistas à dos comícios de Trump — à exceção de que não havia só apoiadores, mas também democratas. Cada frase do presidente era interrompida por aplausos calorosos da bancada republicana, que também gritou “mais quatro anos!”

A presidente da Câmara dos Deputados, enquanto isso, rasgou o discurso de Trump, em seu encerramento, em uma cena muito repetida na televisão e comentada nas redes sociais. Pelosi — que, assim como todas as mulheres da sua bancada, vestia branco, em referência às sufragistas, que, há 100 anos, conquistaram o direito ao voto para as mulheres — vingava-se de  Trump, que, fiel ao seu estilo, já em sua chegada, e, antes de falar, recusou-se a apertar a mão da deputada. Perguntada depois da fala sobre o que a fez rasgar o discurso, Pelosi disse que era "a coisa gentil a fazer, considerando a alternativa".

Presidente havia acabado de terminar o balanço de seu governo. Ao chegar, Trump havia se recusado a apertar a mão da presidente da Câmara, Nancy Pelosi

Em meio à preponderância de comportamentos partidários, os momentos de aplausos das duas bancadas foram raros — o primeiro, para a menção de Trump à reforma criminal, que diminuiu penas para quem cometeu crimes não violentos, e, o segundo, para Guaidó, presente com a família, que foi saudado como “o verdadeiro e legítimo presidente da Venezuela” e longamente ovacionado.

'O grande sucesso econômico americano'

O primeiro eixo do discurso do presidente foi a força da economia americana, descrita como “o grande sucesso econômico americano”. O presidente listou uma série de glórias — o menor desemprego da história, maior índice de empregos para jovens, maior renda familiar média. Trump não necessariamente foi fiel à verdade em sua listagem —atacou “as políticas fracassadas” da gestão anterior, ignorando que a economia vem crescendo há 11 anos e que, no mesmo período que o seu, o governo de Barack Obama criou 18% mais empregos.

Trump fez referências explícitas a políticas que beneficiaram americanos negros, hispânicos, asiáticos e mulheres, trabalhadores sem diploma e outras minorias, em referências a grupos que tradicionalmente votam nos democratas. Acenos a trabalhadores tiveram prioridade, e Trump foi enfático ao dizer que os benefícios da economia americana ajudam também as classes mais baixas.

— Depois de décadas de renda parada ou em queda, os salários estão subindo; e, maravilhosamente, estão subindo mais rápido para os trabalhadores de baixa renda, que viram um aumento de 16% desde minha eleição. Este é um boom do colarinho azul — disse.

O presidente praticamente ignorou referências ao meio ambiente em seu discurso, à exceção de uma citação de segundos a uma iniciativa para plantar árvores. Em vez disso, gabou-se que, “graças a uma enfática campanha de redução regulatória, os EUA se tornaram o maior produtor de petróleo e de gás natural do mundo”.

Em relação à saúde, um dos principais pontos da campanha das primárias democratas, disse que os seus rivais “quiseram oferecer plano de saúde para imigrantes sem documentos” — sentada atrás dele, Pelosi balançou a cabeça, e pôde ser vista dizendo baixo “isso não é verdade”. Trump atacou democratas por “tentarem impor uma tomada socialista do sistema de saúde”, criticando, sem citar nomes, propostas dos pré-candidatos Bernie Sanders e Elizabeth Warren.

Seu muro na fronteira sul com o México, ponto central na campanha de 2016, mereceu menção discreta, e foi descrito como um “longo, alto e muito poderoso muro que está sendo construído”. Seu alvo, desta vez, foram as “cidades santuário”, que protegem imigrantes sem documentação regularizada. Trump dedicou longos minutos ao que chamou de “efeitos catastróficos” dessas políticas, e defendeu um projeto de lei que permita a americanos vítimas de imigrantes sem documentos processar cidades com essas leis.

O último trecho de seu discurso foi sobre o terrorismo. Neste tópico, Trump fez menções ao general iraniano Qassem Soleimani, assassinado em janeiro e descrito como “o mais brutal açougueiro do regime do Irã, um monstro que matou milhares de membros do serviço americano”, sem explicar ao que se referia.

Pouco depois, já na conclusão, Trump fez uma lista de heróis americanos, de Thomas Edison e Neil Armstrong a George Washington e Abraham Lincoln, incluindo Wyatt Earp, Davy Crockett e Annie Oakley. Em um raro momento de modéstia na noite, ele não incluiu a si próprio na lista.