O Globo, n. 31593, 05/02/2020. Mundo, p. 28

Fiasco democrata

Depois de um dia de raiva, decepção e caos provocado pelo atraso na divulgação do resultado das primárias realizadas na segunda-feira em Iowa, que deveriam começar a definir o nome que enfrentará o presidente Donald Trump nas eleições de novembro, o Partido Democrata anunciou no fim da tarde de ontem que o ex-prefeito Pete Buttigieg saiu na dianteira, seguido de perto pelo senador Bernie Sanders, com 62% dos votos apurados.

Buttigieg conquistou até agora 26,9% dos delegados do estado na Convenção Nacional Democrata, enquanto Sanders tem 25,1%. A senadora Elizabeth Warren está com 18,3%, o ex-vice-presidente Joe Biden com 15,6%, e a senadora Amy Klobuchar, 12,6%. Os resultados ainda podem mudar, conforme a apuração prossegue.

Embora Buttigieg lidere o resultado em número de delegados, Sanders lidera no voto popular, com 28.220 votos, contra 27.030 de Buttigieg. Warren teve 22.254 e Biden, 14.176. Iowa envia 41 delegados — menos de 1% de todo o país — à convenção democrata, em julho, quando será finalmente nomeado o candidato que enfrentará Trump. Um total de 3.979 delegados será eleito para a convenção.

Buttigieg, de 38 anos, é ex-prefeito da pequena cidade de South Bend, em Indiana, e da ala centrista do Partido Democrata. Ele é o primeiro pré-candidato à Casa Branca assumidamente homossexual do partido, e veterano da Guerra do Afeganistão. Além de seu crescimento, o fraco desempenho de Biden — que também é um centrista e nas pesquisas nacionais aparece como um dos favoritos — é um dos fatos mais significativos do resultado provisório.

— Que noite! Porque hoje à noite, uma improvável esperança se tornou uma inegável realidade. Ainda não sabemos todos os resultados, mas sabemos, com certeza, que, Iowa, você chocou a nação — afirmou ele, que já está em New Hampshire, onde haverá primárias na semana que vem.

— É para isto que estamos trabalhando há mais de um ano, para convencer nossos compatriotas americanos: que uma visão nova e melhor visão podem trazer um novo e melhor país.

Também discursando em um comício em New Hampshire, Sanders não fez menção ao segundo lugar, preferindo chamar a atenção para a vitória no voto popular:

— Estamos em um momento sem precedentes na história americana. Tenho muito orgulho de dizer que, na noite passada em Iowa, nós recebemos mais votos que qualquer candidato — afirmou, prevendo também um bom resultado em New Hampshire, onde é favorito.

Warren disse, em mensagem no Twitter, que “está orgulhosa” do resultado, que construiu um “poderoso movimento de base” que irá ajudá-la nas próximas etapas da primária. Já a campanha de Biden, em uma mensagem enviada por e-mail, afirmou que “lutou duro em Iowa” e agora está “numa boa posição para defender nossa posição no resto do país”.

O voto dividido, com cinco candidatos tendo o mais de 10%, significa que a corrida permanece muito aberta, e que dificilmente a votação de Iowa terá um papel decisivo para a definição do candidato democrata — apesar do pequeno número de delegados em jogo, por ser o primeiro a votar, o estado tradicionalmente serve como termômetro do potencial das candidaturas.

A divulgação foi atrasada por causa de uma falha de um aplicativo de celular, usado pela primeira vez neste ano em Iowa, pelo qual as 1.679 seções eleitorais do estado enviariam seus resultados à direção regional do partido. O aplicativo — que não havia sido testado a contento para a eleição primária — não funcionou em alguns casos e continha inicialmente um erro de programação, que bloqueava a transmissão de parte dos dados. Uma linha telefônica para a comunicação oral dos resultados pelos presidentes de seção tampouco funcionou como deveria.

O atraso roubou o timing dos pré-candidatos que chegaram na dianteira, transmitiu uma imagem de desorganização, capitalizada por Trump, e abriu margem para uma ofensiva publicitária do ex-prefeito de Nova York e empresário das comunicações Michael Bloomberg, um ex-republicano que entrou tarde na disputa democrata e não participou das primárias de Iowa. Bloomberg, que aposta na chamada Superterça, em 3 de março, quando 14 estados terão primárias, autorizou sua campanha a dobrar os gastos em comerciais de televisão e o tamanho de sua equipe, que passará a mais de dois mil pessoas em 40 estados — as de Buttigieg e Biden, entre as maiores, têm entre 400 e 600 integrantes cada.

O presidente do Partido Democrata em Iowa, Troy Price, pediu desculpas pelo atraso, que chamou de “inaceitável”. Ele disse que sua “maior preocupação foi garantir que estes resultados estão corretos”, e prometeu uma “investigação completa, transparente e independente”.

O Des Moines Register, principal jornal de Iowa, revelou que o aplicativo que provocou o atraso foi desenvolvido pela empresa Shadow Inc., fundada por duas pessoas ligadas à cúpula democrata que colaboraram com a campanha presidencial de Hillary Clinton em 2016, Gerard Niemira e Krista Davis. Pelo Twitter, a empresa se desculpou pelo atraso. O Partido Democrata de Nevada, que também vota pelo sistema de caucus, espécie de assembleias populares, disse que não utilizará o mesmo aplicativo em seu processo eleitoral, em 22 de fevereiro.

Durante o dia, o chefe da campanha de reeleição de Trump, Brad Parscale, aproveitou a confusão para atacar os democratas, afirmando que eles estão “sendo cozidos em um caucus bagunçado que eles próprios criaram, com o fracasso mais desleixado da história”.

O próprio presidente não resistiu e, depois de se gabar da própria vitória no caucus republicano — mesmo não tendo concorrência efetiva — tuitou: “Desastre completo. Nada funciona. É assim que eles governam o país”.

Os presidentes de cada uma das 1.679 seções eleitorais deveriam enviar os resultados por um aplicativo de celular desenvolvido pelo Partido Democrata. Muitos desses presidentes, no entanto, não conseguiram baixar o aplicativo ou acessar a rede. Quando tentaram telefonar para informar os resultados — o plano B —, não obtiveram resposta ou encontraram linhas ocupadas. De acordo com relatos, também não houve treinamento prévio para que o sistema fosse usado pelos presidentes de seção, que são todos voluntários. Segundo o New York Times, o sistema teria sido desenvolvido às pressas nos últimos dois meses, não foi testado e enfrentava problemas de conectividade em lugares com fraco acesso à internet.

E quando isso ficou claro?

No início da madrugada, o Partido Democrata justificou o atraso afirmando ter encontrado “incongruências nos relatos de três grupos de resultados” — 35% dos números — mas negando atividades de hackers ou instabilidade no aplicativo. As “incongruências” estariam na apuração do número de delegados obtido por cada pré-candidato.

Em um segundo comunicado ontem, o partido disse que o aplicativo estava registrando os dados corretamente, mas os transmitia apenas de modo parcial, devido a um erro de programação no sistema. Isto, segundo a sigla, teria sido constatado após uma comparação entre as informações coletadas pelo sistema e os registros manuais de cada seção eleitoral.

Que resultados estão sendo anunciados?

Até 2016, o Partido Democrata de Iowa anunciava apenas o resultado final do caucus, com o número de delegados que cada pré-candidato obteve. Desta vez, porém, serão divulgados também os votos que cada pré-candidato teve na primeira e na segunda etapa do caucus. Em Iowa, os eleitores se reúnem nas 1.679 seções eleitorais, agrupados segundo seu candidato favorito. Na segunda etapa, os grupos com menos de 15% dos presentes são desfeitos e seus integrantes devem “migrar” para outro candidato. Os votos dessa segunda etapa determinam os pré-candidatos que serão representados pelos 41 delegados de Iowa na Convenção Nacional Democrata, em julho, quando será nomeado o candidato que enfrentará Trump.