O Globo, n. 31604, 16/02/2020. País, p. 8

A fé do poder

Marlen Couto
Thais Arbex
Chico Otavio
Eliane Oliveira


A presença de Jair Bolsonaro em um megaevento evangélico, como ocorreu ontem no Rio, não é exceção na agenda do presidente. Levantamento feito pelo GLOBO aponta que, em 2019, Bolsonaro teve 40 compromissos oficiais com lideranças evangélicas, uma média de três por mês — foram 23 encontros com pastores no Planalto e 17 eventos públicos, incluindo cinco cultos e duas marchas para Jesus.

O presidente foi aplaudido ontem ao discursar na comemoração dos 40 anos da Igreja Internacional da Graça de Deus, do missionário R.R. Soares, que encheu a Praia de Botafogo, no Rio.

A frequência de eventos evangélicos observada na agenda presidencial, quatro vezes maior que ade compromissos ligados à Igreja Católica, é acompanhada de uma série de sinalizações nas políticas públicas para a base religiosa, que o próprio Bolsonaro aponta como responsável por sua vitória em 2018. Dos encontros no Planalto, o então secretário da Receita Federal, Marcos Cintra,cinco deles. Já seu sucessor, José Barroso Tostes Neto, esteve em uma reunião, em novembro passado.

A presença do titular da Receita está relacionada ao principal pleito dos líderes evangélicos: a cobrança do que eles consideram “penalidades desproporcionais” por parte do órgão. Abancada evangélica no Congresso já levou à Receita um pedido para que as cobranças de obrigações tributárias sobre as organizações religiosas sejam reavaliadas. De acordo coma Constituição, as igrejas têm imunidade tributária.

Assim como entidades filantrópicas, partidos políticos e sindicatos, elas estão desobrigadas de pagamentos de impostos sobre seus patrimônio, renda ou serviços. Representantes evangélicos alegam que, apesar das garantias constitucionais, muitas organizações religiosas têm sido tratadas e fiscalizadas como empresas privadas.

Somente as 20 igrejas e associações evangélicas com maiores dívidas ativas junto à União somam débito de R$ 888,4 milhões, segundo dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Lista de pedidos

Em maio do ano passado, num encontro com Cintra, então à frente da Receita, os parlamentares evangélicos apresentaram, em detalhes, cada uma das demandas. Em julho, o governo atendeu parcialmente alguns dos itens, entre os quais o que solicitava a flexibilização das normas para aprestação de contas de igrejas. Ficou estabelecido que organizações religiosas que arrecadem menos de R$ 4,8 milhões sejam dispensadas de apresentar Escrituração Contábil Digital (ECD), um sistema de envio de dados à Receita. Antes, esse teto era de R$ 1,2 milhão. O relatório comas demandas, a que O GLOBO teve acesso, foi atualiza doem novembro como status da negociação. Apesar da decisão da Receita nesse tópico, os evangélicos não se sentiram totalmente contemplados.

O documento repassado a integrantes da bancada do Congresso registra a conquista, mas destaca que “tal procedimento atende as organizações de pequeno porte, mas não abarca as de médio e grande porte”. Diante desse cenário, os evangélicos continuam as negociações com o Fisco. Um dos principais itens em discussão é a anistia de multas tributárias. Essa demanda ainda não foi atendida. Embora parte da bancada não tenha desistido do pleito e diga, nos bastidores, que o presidente Jair Bolsonaro tem a oportunidade de mostrar que seu governo cumpre direitos constitucionais, a ala mais pragmática entende que o perdão dos débitos terá que ser feito por meio de projeto no Congresso.

Nesse cenário, hoje, uma das principais pautas dos religiosos é a reforma tributária. Em paralelo, os evangélicos têm conseguido fazer avançar sua agenda nos ministérios. Importantes líderes do segmento participaram, por exemplo, da elaboração da campanha sobre prevenção à gravidez na adolescência, lançada pelos ministros da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, e da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Apesar de a abstinência sexual não aparecer de forma expressa na campanha, os evangélicos ficaram satisfeitos. A expectativa da bancada evangélica é que a partir de agora, com Onyx Lorenzoni no comando da pasta da Cidadania, a pauta de costumes ganhe ainda mais celeridade. Está sob o guarda-chuva do ministro, evangélico da igreja Sara Nossa Terra, o debate sobre o combate às drogas.

Na última quarta-feira, ainda sob o comando de Osmar Terra, o ministério patrocinou o lançamento do Fórum Permanente de Mobilização Contra as Drogas. A iniciativa, segundo seu manifesto, tem como objetivo “colaborar na construção de um país protegido das drogas” e foi gestada com a participação de líderes do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política (Fenasp). A ação evangélica extrapolou as portas do Palácio de Planalto e chegou ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, com quem o grupo conseguiu um acordo para tirar da pauta a discussão sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. O debate, previsto para novembro, ainda não foi incluído na agenda do tribunal.

Ao discursar diante da multidão evangélica em Botafogo, Bolsonaro repetiu ontem que segue os valores religiosos e disse que, embora a Constituição afirme que o Estado é laico, “o presidente é cristão”.

— O Brasil está mudando. Mais do que pelos números da economia, mas porque respeita a família — disse Bolsonaro.

Religião se torna norte da política externa brasileira

O discurso em nome da fé cristã se tornou um dos nortes da política externa brasileira no governo do presidente Jair Bolsonaro. Para aqueles que argumentam que, pela Constituição, o Estado é laico, os diplomatas mais próximos ao Palácio do Planalto têm uma resposta pronta: todos os credos e religiões devem tero mesmo tratamento, masa realidade é que o Brasil é um país cristão. Essa nova vertente da diplomacia brasileira se consolidou há cerca de dez dias, em Washington, quando Brasil, Estados Unidos, Hungria e Polônia lançaram oficialmente a Aliança pela Liberdade Religiosa. O objetivo central desse “chamamento global” é combatera perseguição de cristãos no mundo.

Mas há outros movimentos na política externa. Brasil e Hungria discutem a criação de um fundo para financiar comunidades cristãs que vivem no Oriente Médio. Outro passo foi dado em março de 2019, quando o Brasil e mais sete países conseguiram aprovar uma resolução, na ONU, declarando 22 de agosto como o Dia Internacional em Memória das Vítimas de Atos de Violência baseados em Religião ou Crença.

Embaixada em Israel

No horizonte, existe a promessa de Bolso na rode transferira embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. A medida, que segundo o presidente será tomada até 2021, tema questão religiosa como pano de fundo — denominações evangélicas apoiam Israel no desejo de transformar Jerusalém em sua única capital. O setor oriental de Jerusalém é considerado território ocupado pela ONU e reivindicado pelos palestinos como capital de seu futuro Estado. Se a transferência se concretizar, as relações do Brasil com os países islâmicos podem ser prejudicadas.

A guinada na política externa se repetiu em relação aos direitos humanos. O caso mais simbólico e polêmico nesse sentido ocorreu em março passado. A delegação brasileira nas Nações Unidas se recusou a assinar um documento sobre saúde reprodutiva da mulher, alegando que, por trás desse debate, estava embutido o direito ao aborto. Uma fonte do governo Bolsonaro afirmou que, hoje, corrige-se um “erro histórico”: o Itamaraty defenderia os direitos humanos em todos os organismos multilaterais que participava, menos quando os direitos violados eram de cristãos. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, costuma dizer que apolítica externa, hoje, “tem alma”.

Em uma deferência à bancada evangélica no Congresso, Bolsonaro e Ernesto Araújo costumam levar esses parlamentares em viagens internacionais. No início de janeiro, acompanharam Araújo para um périplo por países africanos os deputados Helio Lopes (PSL-RJ), Marco Feliciano (Podemos-SP) e Márcio Marinho (PRB-BA) — os dois últimos bispos da Universal. Todos são da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara. Feliciano ressalta que a “a igreja evangélica é missionária” e que “o internacionalismo está em seu DNA”. Ele diz, porém, que não há ingerência na política interna de outros países. Na África e na América Latina, há forte presença de igrejas brasileiras.

— Como parlamentares, juramos defendera Constituição, a qual salienta o direito à autodeterminação dos povos — afirma. Para Nelson Franco Jobim, professor de pós-graduação em Relações Internacionais das Faculdades Hélio Alonso, se o Estado é laico, a política externa não deve ter viés religioso. Para ele, a contaminação da política pela religião traz o risco do fundamentalismo.

— Vamos discriminar países muçulmanos? A religião é dogmática, não pode fazer concessões em diversas áreas. É uma boa desculpa para adotar políticas radicais em nome de Deus — afirma.