O Estado de S. Paulo, n. 46560, 09/04/2021. Política, p. A8

Análise: Ministros passam ao largo de convicções religiosas

Elival da Silva  Ramos


A decisão de ontem do plenário do Supremo Tribunal Federal trouxe à tona assunto importante para o futuro da democracia brasileira. Pouco após a Proclamação da República, o Decreto n.º 119-A proibiu a intervenção da autoridade federal e dos Estados em matéria religiosa, consagrando a plena liberdade de culto. O Estado brasileiro não é nem hostil nem favorável às religiões em geral: simplesmente se abstém de se envolver na matéria, e isso para preservar a própria liberdade religiosa. Logo, não se pode admitir avaliações de políticas públicas sob fundamento unicamente religioso.

Não há dúvida de que vivenciamos pandemia de gravidade ímpar. De outra parte, é consenso entre os especialistas que, enquanto não avançarmos na vacinação, a única maneira de controlar a contaminação crescente é o isolamento social, em suas várias formas. Daí a ampliação das vedações a atividades presenciais, incluindo as práticas religiosas coletivas. Não há nisso a mais tênue agressão à liberdade religiosa. As diversas confissões religiosas podem continuar a praticar normalmente suas atividades, incluindo cultos e missas. Apenas, o que não se admite é que reúnam contingente expressivo de pessoas em momento de recrudescimento da pandemia.

Os argumentos de cunho estritamente religioso não podem ser brandidos por quem veste a toga e não vestes sacras. As credenciais dos integrantes do Supremo devem passar ao largo de convicções religiosas, para se concentrarem em outros atributos. Sobretudo, o que se espera é que sejam “terrivelmente” democratas, o que exige que se mantenham afastados, enquanto juízes estatais, do envolvimento figadal com seitas, igrejas ou cultos de qualquer espécie. Afinal, a democracia consiste no debate racional de proposições plurais, distanciando-se do sectarismo e da irracionalidade que, não raro, marcam o envolvimento do Estado com matéria religiosa.

Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e Ex-Procurador-Geral do Estado de São Paulo