O Estado de S. Paulo, n. 46559, 08/04/2021. Notas & Informações, p. A3

Notas dissonantes



Os discursos de posse dos novos ministros das Relações Exteriores, o embaixador Carlos Alberto Franco França, e da Justiça e Segurança Pública, o delegado da Polícia Federal (PF) Anderson Torres, foram diametralmente opostos no que concerne à compreensão de qual seja o papel de suas pastas nesta quadra dramática da história nacional.

Enquanto o novo chanceler foi “simples, direto e objetivo” e indicou com seu discurso a volta da “atitude profissional da diplomacia”, como analisou o embaixador Rubens Barbosa, o novo ministro da Justiça preferiu transmitir a mensagem que o presidente Jair Bolsonaro queria ouvir, o que não raro colide com as reais necessidades do País.

“A primeira urgência (do País) é o combate à pandemia da covid-19”, disse o ministro Carlos França, deixando claro que “esta é uma tarefa que extrapola uma visão unicamente de governo”, mas que, no próprio governo, compete não só ao Ministério da Saúde, mas também ao Itamaraty.

Só o fato de o novo chanceler demonstrar ter os pés fincados no mundo real e um senso de prioridade bem calibrado já é, por si só, um enorme alívio para a Nação, que por mais de dois anos teve de suportar o sequestro da Casa de Rio Branco por um bando de alucinados que agiam sob as ordens de um obscuro ex-astrólogo, e não de acordo com os princípios que regem as relações exteriores inscritos na Constituição.

Carlos França corretamente reconheceu que “o momento é de urgências”, dividindo-as em três: a urgência no campo da saúde, em especial na mobilização das representações diplomáticas do Brasil nos esforços para aquisição de vacinas e insumos; a urgência da economia; e, por fim, a urgência do desenvolvimento sustentável. Música para os ouvidos de quem até outro dia tinha de aguentar a triste figura do ex-ministro Ernesto Araújo, não sem tempo retirado do cargo, depois de atacar nações parceiras, como a China, disseminar teorias conspirativas estapafúrdias e, como se não bastasse, mostrar-se orgulhoso por ter rebaixado o Brasil à condição de pária internacional.

Se o ministro das Relações Exteriores fez um discurso de apaziguamento e reorientação profissional do Itamaraty, o ministro da Justiça mostrou alinhamento total à falaciosa oposição que o presidente da República faz entre o combate à pandemia e a retomada da atividade econômica, como se uma coisa fosse dissociada da outra. No discurso de posse, Anderson Torres afirmou que “precisamos trazer de volta a economia deste país, colocar as pessoas para trabalhar”, pois, em sua visão, o Brasil precisa “girar para a gente poder sair desta pandemia”.

Anderson Torres disse ter “medo” de haver “crises maiores” do que a crise sanitária “decorrentes da fome, do desemprego e de outros problemas”, insinuando que o Brasil estaria à beira do caos social, com aumento da criminalidade, invasões de supermercados e conflitos fratricidas nas ruas de todo o País. “Nesse momento, a força da segurança pública tem que se fazer presente, garantindo a todos um ir e vir sereno e pacífico”, disse o ministro da Justiça. Foi um discurso escrito sob medida para o agrado de Jair Bolsonaro, que, dia sim e outro também, alude ao “caos” inexistente para criticar as medidas de combate à pandemia adotadas por governadores e prefeitos.

Não surpreende que os dois novos ministros da Esplanada tenham adotado discursos tão díspares. É sabido que a demissão de Ernesto Araújo não ocorreu por livre e espontânea vontade de Bolsonaro, mas por imposição do Centrão, que via nos desatinos do exchanceler um entrave para a vacinação dos brasileiros e, portanto, uma grande ameaça às pretensões eleitorais dos membros do grupo.

Já na pasta da Justiça e da Segurança Pública, ao que parece sem sofrer interferências externas, Bolsonaro pôde dar vazão à sua natureza, alçando ao cargo um delegado que parece sensível a seus interesses e de sua prole de encalacrados em inquéritos e ações judiciais.