O Globo, n. 31606, 18/02/2020. Sociedade, p. 23

Na China, 760 milhões são vigiados para conter vírus

Raymond Zhong
Paul Mozur Xangai


Batalhões de agentes da vizinhança, voluntários uniformizados e representantes do Partido Comunista inundaram cidades e vilarejos da China para realizar uma das maiores campanhas de controle social da História. O objetivo: manter centenas de milhões de pessoas afastadas de todos, exceto de seus parentes mais próximos.

O país está combatendo o surto de coronavírus comum a mobilização de base que lembra as cruzadas de massa do tem pode M ao T sé-Tu ng( presidentedo PC chinês de 1945 a 1976), que não são vistas na China há décadas. Basicamente, a prevenção da epidemia tem em sua linha de frente uma versão anabolizada dos grupos de vigilância de bairro.

Os complexos habitacionais em algumas cidades emitem passes para regular a frequência com que os moradores deixam suas casas. Alguns edifícios impediram a volta de seus próprios inquilinos, se estes tiverem vindo de fora da cidade.

Nas estações de trem, pessoas são impedidas de entrar nas cidades se não puderem provar que vivem ou trabalham lá. No campo, as aldeias foram fechadas com veículos, tendas e outras barreiras improvisadas.

Apesar do arsenal de ferramentas de vigilância de alta tecnologia da China, os controles são aplicados principalmente por centenas de milhares de trabalhadores e voluntários, que verificam a temperatura dos residentes, registram seus movimentos, supervisionam as quarentenas e — o mais importante — mantêm afastados os que podem carregar o vírus.

Os bloqueios residenciais de rigidez variada — desde postos de controle nas entradas de edifícios até limites rigorosos para sair ao ar livre — agora cobrem pelo menos 760 milhões de pessoas na China, ou mais da metade da população do país, de acordo com uma análise do New York Times feita a partir de anúncios do governo em províncias e grandes cidades.

Muitas dessas pessoas vivem longe da cidade de Wuhan, onde o vírus foi denunciado pela primeira vez e que o governo isolou no mês passado.

Em toda a China, bairros e localidades emitiram suas próprias regras sobre idas e vindas dos residentes, o que significa que o número total de pessoas afetadas pode ser ainda maior. As políticas variam amplamente, deixando alguns lugares em um congelamento virtual e outros com poucas restrições.

O presidente chinês, Xi Jinping, pediu uma “guerra popular” total para domar o surto. Mas as restrições impediram que os trabalhadores retornassem às fábricas e empresas, pressionando a economia gigante da China.

Rigidez na execução

Com as autoridades locais exercendo controle direto sobre os movimentos das pessoas, não é surpresa que algumas tenham levado a execução ao extremo.

Li Jing, 40, professora associada de sociologia na Universidade de Zhejiang, na cidade oriental de Hangzhou, foi quase impedida de levar o marido a um hospital recentemente depois que ele se engasgou com uma espinha de peixe durante o jantar. O motivo? Seu bairro permite que apenas uma pessoa por família saia de casa todos os dias.

— Depois que a epidemia foi divulgada, o governo central exerceu enorme pressão sobre as autoridades locais — disse a professora. — Isso desencadeou uma competição entre regiões, e os governos locais passaram de excessivamente conservadores a radicais.

Segundo ela, mesmo quando a situação é aliviada ou a taxa de mortalidade não é alta, “a máquina do governo não consegue mudar de direção ou afrouxar”.

Os esforços de prevenção da China estão sendo liderados por seus diversos comitês de vizinhança, que normalmente servem de intermediários entre os residentes e as autoridades locais. Eles são apoiados pelo sistema de “gerenciamento de rede” do governo, que divide o país em pequenas seções e designa pessoas para vigiar cada uma delas, garantindo um controle firme sobre uma grande população.

A província de Zhejiang, na costa sudeste da China, tem uma população de quase 60 milhões e recrutou 330 mil “trabalhadores da rede”. A província de Hubei, cuja capital é Wuhan, distribuiu 170 mil. A província de Guangdong, no sul, convocou 177 mil; Sichuan, 308 mil, e a megacidade de Chongqing, 118 mil.

As autoridades também estão combinando a imensa mão de obra com tecnologia móvel para rastrear pessoas que podem ter sido expostas ao vírus.

Os provedores de celular estatais da China permitem que os assinantes enviem mensagens de texto para uma linha direta que gera uma lista de províncias que eles visitaram recentemente.

Em uma estação ferroviária de alta velocidade na cidade oriental de Yiwu, na semana passada, trabalhadores com jalecos brancos exigiram que os passageiros enviassem mensagens de texto que mostrassem seus dados de deslocamento, antes de desembarcar.

Um aplicativo desenvolvido por um fabricante estatal de eletrônicos militares permite que os cidadãos chineses insiram seu nome e número de identificação nacional e sejam informados se podem ter entrado em contato, em um avião, trem ou ônibus, com um portador do vírus.

É muito cedo para dizer se a estratégia da China conteve o surto. Com um grande número de novas infecções sendo relatadas todos os dias, o governo tem razões claras para minimizar o contato humano e as viagens domésticas.

Mas especialistas dizem que, em epidemias, medidas excessivas podem sair pela culatra, assustando as pessoas infectadas e levando-as a se esconder, dificultando o controle do surto.

— A saúde pública depende da confiança do público — disse Alexandra L. Phelan, especialista em direito global da saúde na Universidade de Georgetown. — Essas quarentenas no nível da comunidade e a natureza arbitrária com que estão sendo impostas e vinculadas à polícia e a outras autoridades as transformam, na prática, em ações punitivas, uma ação coercitiva, e não de saúde pública.