O Globo, n. 31572, 15/01/2020. Rio, p. 14

A crise da água

Felipe Grinberg
Luiz Ernesto Magalhães
Marjoriê Cristine
Paulo Cappelli
Renan Rodrigues


Sobram dúvidas, faltam respostas. Desde o período do réveillon, quando moradores da Região Metropolitana do Rio começaram a relatar forte cheiro, gosto de terra e turbidez na água que chega às suas casas, a Cedae não dá explicações detalhadas sobre o problema. Por meio de um comunicado, a empresa informou apenas que a causa é a presença de geosmina, substância produzida por algas. Mas, segundo especialistas, a justificativa não explica a coloração da água. Ontem à noite, o chefe da Estação de Tratamento de Água Guandu, Júlio César Antunes, foi exonerado. A concessionária promete que explicará hoje outras medidas em entrevista coletiva.

Ontem, o professor Gandhi Giordano, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Uerj, disse que a situação ainda está longe de ser normalizada.

— Não é possível estimar quando a qualidade do abastecimento será restabelecida. As algas que proliferaram nos mananciais estão nos reservatórios e continuam se reproduzindo. Isso vem acontecendo por causa de alguns fatores, como calor e despejo de esgoto — disse ontem o especialista, que, na segunda-feira, participou de uma inspeção no sistema de tratamento da Cedae organizada pelo Ministério Público estadual.

Um levantamento feito pelo GLOBO, que tomou como base relatos enviados ao jornal ou publicados em redes sociais, indica que alterações na água já foram registradas em 46 bairros desde o último dia 2. Além disso, teriam sido constatadas por moradores de seis municípios da Baixada Fluminense.

Padrão de potabilidade

Um aumento de casos de gastroenterite em clínicas e hospitais, associado à turbidez, ao cheiro e ao gosto da água, desencadeou uma desconfiança generalizada sobre a qualidade do tratamento. A Cedae afirmou ter feito análises que apontaram conformidade com os padrões estabelecidos pelo Ministério da Saúde. Na semana passada, a Vigilância Sanitária municipal fez testes com 107 amostras coletadas em vários pontos do Rio e também anunciou resultados satisfatórios.

No entanto, destacou que só foram avaliados parâmetros de potabilidade, como turbidez, cloro, flúor, pH, coliformes totais e presença de Escherichia coli. Especialistas sugerem a realização de exames que detectem eventual presença de cianobactérias, e lembram que a geosmina não dá coloração à água.

O presidente da Cedae, Hélio Cabral, não se pronunciou sobre as dúvidas relacionadas à qualidade da água. Em um comunicado, a concessionária informou, na quinta-feira da semana passada, que passará a adotar, por tempo indeterminado, o carvão ativado em seu processo de tratamento para reter a geosmina.

Enquanto não há solução para o problema, a corrida por água mineral continua. Ontem à tarde, um grande supermercado da Tijuca só tinha garrafinhas de uma marca estrangeira. A unidade estava à venda por R$ 9.

Em Botafogo, um supermercado só tinha 22 garrafas de água nas prateleiras, todas com gás. Sem opção, dois clientes decidiram levá-las. No mesmo bairro, um depósito de bebidas acabou com seu estoque de galões de 20 litros antes do meio-dia.

O que se sabe sobre o problema

Qual a explicação da Cedae?

Por nota, a empresa informou, no último dia 7, que detectou a presença de geosmina, uma substância produzida por algas, em sua rede de abastecimento. Segundo a Cedae, houve uma grande proliferação de algas em mananciais por conta de variações de temperatura, luminosidade e do índice pluviométrico.

A geosmina faz mal à saúde?

A Cedae garante que não. Porém Fabiano Thompson, professor do Instituto de Biologia e da Coppe/ UFRJ, destaca que ela só é inofensiva se tiver concentração inferior a 75 microgramas por mililitro de água.

Pode haver outras substâncias na água?

A geosmina deixa água com gosto e cheiro de terra, mas não provoca turbidez. Adacto Ottoni,professor de engenharia sanitária da Uerj, alerta que a presença da substância indica o risco de contaminação por componentes tóxicos. O especialista chama a atenção que apenas a sujeira é capaz de deixar a água turva e, nessas condições, ela não deveria ser distribuída.

Quais testes foram feitos?

De acordo com a Cedae, foram feitas análises em atendimento às exigências do Ministério da Saúde. A empresa divulgou que as amostras coletadas indicaram ausência de coliformes totais e de Escherichia coli — bactéria que indica má qualidade da água. Os testes também avaliaram três parâmetros físicoquímicos: concentração de cloro, cor e turbidez, com resultados dentro dos padrões normais.

No entanto,uma análise encomendada pelo “RJ TV”, da Rede Globo, apresentou dois parâmetros alterados numa amostra coletada em São Cristóvão. O resultado apontou turbidez muito elevada e a presença de bactérias heterotróficas, que podem servir de alimento para micro-organismos que causam doenças. Especialistas destacam que a Cedae, diante da passagem de água turva por seu sistema de tratamento, precisa fazer contagem e análise de cianotoxinas.

É recomendado ferver a água?

Especialistas também alertam que, enquanto não for descartada a presença de outras substâncias, a água deve ser filtrada e fervida para beber, cozinhar, lavar o rosto e escovar os dentes. Para a filtração, o recomendado é o uso de carvão ativado.

Após 12 dias, Witzel diz que transtorno é 'inadmissível' e cobra apuração

De férias, o governador Wilson Witzel falou ontem, pela primeira vez, sobre a crise da água em suas redes sociais, 12 dias após terem início relatos de consumidores da Cedae sobre mal-estar, com sintomas semelhantes aos de gastroenterite. Ele, que passou um período em Orlando, nos Estados Unidos, classificou de “inadmissíveis os transtornos que a população vem sofrendo”. Ele disse ainda que determinou “uma apuração rigorosa tanto da qualidade da água quanto dos processos de gestão da companhia”.

“A empresa deve acelerar a solução definitiva para aprimorar a qualidade da água e do tratamento de esgoto das cidades próximas aos mananciais. O consumidor não pode ser prejudicado”, afirmou Witzel no Twitter.

Desde janeiro do ano passado, o engenheiro Hélio Cabral Moreira ocupa a presidência da Cedae. Ativo nas redes sociais, onde divulga as realizações de sua gestão, ele não as utiliza desde o fim do mês passado. A última manifestação de Hélio foi em 26 de dezembro, quando fez um post sobre um seminário de segurança jurídica e investimentos no Rio.

Hélio chegou a ser um dos réus de uma ação do Ministério Público de Minas Gerais sobre o desastre ambiental de Mariana, que deixou 19 mortos em novembro de 2015. Conselheiro da Samarco, ele foi acusado de saber do risco de um acidente e nada ter feito. Em setembro do ano passado, no entanto, a Justiça trancou a ação contra Hélio Cabral e outros dois executivos da empresa de mineração por entender que faltavam provas para responsabilizá-los pela tragédia.

O executivo sido criticado por funcionários da Cedae por ter demitido 54 pessoas em março de 2019, o que teria como pano de fundo uma disputa política. Entre os demitidos havia técnicos responsáveis pelo controle da qualidade da água. Procurado pelo GLOBO, Hélio Cabral Moreira não quis dar entrevista.