O Globo, n. 31572, 15/01/2020. Opinião, p. 2

Juiz de primeira instância continua sob ataque



É democrático que forças políticas se movimentem no Congresso para cumprir sua agenda de interesses. Faz parte da democracia representativa. E a sociedade pode acompanhar esse jogo, pois um aspecto do Legislativo é a transparência. Mesmo que haja inevitáveis manobras e costuras de bastidores, em algum momento tudo se materializa na forma de projetos de leis ou de emendas à Constituição. Pode-se, então, ficar sabendo o que está por trás de cada demanda política.

Na reação de parte dos políticos à eficácia que organismos de Estado passaram a ter no combate à corrupção, já se redigiram projetos teleguiados e se desengavetaram propostas antigas convenientes.

Um exemplo é a Lei do Abuso de Autoridade, desencavada no Senado pelo então presidente da Casa, Renan Calheiros, em defesa própria. A operação foi bem-sucedida.

Entre outras iniciativas típicas deste movimento, usa-se uma proposta de emenda à Constituição (PEC) já aprovada no Senado para reduzir o alcance do foro especial a apenas cinco autoridades: presidente da República, o vice, presidentes da Câmara e Senado, assim como do Supremo Tribunal Federal (STF). Uma redefinição bem-vinda.

Mas aproveitam a proposta de emenda à Carta para incluir em seu texto que juiz de primeira instância não poderá estabelecer medidas cautelares para parlamentares — quebra de sigilo, busca e apreensões etc. Só tribunais superiores. Por ironia, um projeto para reduzir privilégios é manipulado para criar vantagens.

O líder do Podemos, José Nelton (GO), explica que a emenda visa a evitar “juiz ativista”. Trata-se de um resultado do “efeito Moro”: para coibir a atuação dos juízes de primeira instância, como foi o ministro da Justiça e Segurança Pública, na Operação Lava-Jato, resolve-se cassar parte das prerrogativas do magistrado que atua na partida de inquéritos e processos, para tornálo um juiz de segunda classe.

A intenção de esvaziar a primeira instância da Justiça é grave. Porque é nela que começa a avaliação de provas concretas. Recursos podem ser encaminhados à instância seguinte, a segunda, mas, a partir desta, nas Cortes superiores, não se julgam mais provas, apenas deliberase sobre interpretações jurídicas. Depois do recuo do Supremo na prisão em segunda instância, esta emenda apresentada na Câmara esvazia ainda mais o poder dos juízes que entram nas entranhas propriamente ditas dos processos.

Outra emenda, a do juiz de garantias, também feita no Congresso, ao pacote anticrime, recém-sancionado pelo presidente Bolsonaro, vai na mesma direção de reduzir o peso do juiz de primeira instância. Uma parcela de seu poder foi subtraída.

Os efeitos dessas medidas, cujo objetivoé bastante claro, serão a volta da percepção de que no Brasil o criminoso de colarinho branco goza de grande impunidade.