O Globo, n. 31569, 12/01/2020. Mundo, p. 37

Linhas vermelhas implodidas

André Duchiade
Vivian Oswald


Um conflito convencional entre os Estados Unidos e o Irã continua improvável mesmo depois dos episódios de alta tensão dos últimos dez dias, segundo oito especialistas em conflitos militares, relações internacionais e Oriente Médio consultados pelo Globo. De acordo com eles, as duas partes têm interesse em evitar uma guerra, que seria muito custosa, sem oferecer perspectiva de vitória a qualquer um dos lados.

Apesar disso, ressaltaram, a situação se tornou mais movediça e incerta desde a execução de Qassem Soleimani, um alto general de um país com quem os EUA não estão declaradamente em guerra. Seu assassinato foi uma ação cuja ousadia era considerada incabível, e, a partir dela, as próprias definições de guerra tornaram se imprecisas.

— A maneira como as guerras são conduzidas mudou drasticamente. O modelo convencional de soldados contra soldados se tornou obsoleto: tem altos custos que ultrapassam os benefícios. Já medidas de baixa intensidade como guerra por drones, no ciberespaço, e outras novas tecnologias produzem um cálculo de custo-benefício diferente, com menos riscos para as duas partes —afirmou a iraniana Hager Ali, pesquisadora do Instituto de Estudos Globais e Regionais, de Hamburgo.

— Embora não estejamos necessariamente perto de uma guerra clássica, o assassinato de Soleimani foi uma ação tática em uma guerra não convencional de baixa intensidade, que já está em curso.

Potencial de contágio

As chances de um conflito tradicional serem remotas se devem aos prejuízos que os dois lados poderiam causar um ao outro, com pouco retorno. Irã e EUA contam com aliados na região, e é quase um consenso que um conflito se alastraria por todo o Oriente Médio, com enorme potencial de desestabilização. Candidato à reeleição em novembro, o presidente americano, Donald Trump, quer evitar esse cenário.

O republicano se elegeu com uma plataforma crítica às campanhas americanas no Afeganistão e no Iraque, que apresentou como caras e desvantajosas aos interesses americanos. Sua oposição ao que chamou de “guerras infindáveis” apela aos eleitores dos chamados “estados-pêndulo”, onde muitos o preferiram a Hillary Clinton por considerarem que tinha menores pretensões bélicas.

O Irã, por sua vez, sabe que não pode vencer uma guerra com os EUA, e deseja a todo custo evitar uma mudança de regime. Dessa maneira, o país “não caiu na armadilha de Trump” em sua resposta, afirmou Ghoncheh Tazmini, pesquisadora visitante do Centro de Oriente Médio da London School of Economics. Diante da execução de um militar de alta patente por outro Estado, Teerã lançou mísseis contra um aba seque abrigava militaresdos EUA, mas evitou a morte de americanos. Deixou claro que pode retaliar, masque tinha a disposição de abrandar a temperatura.

— Foi uma reação cirúrgica, suficiente para vingar a morte de Soleimani, mas não para jogar o país no precipício e levá lo a uma guerra —disse. No entanto, os dois países caminham agora em um terreno ainda mais pantanoso, em que as regras são incertas e “o risco de mal-entendidos, acidentes e de uma escalada é claramente real”, disse Leslie Vinjamuri, diretora do Programa de EUA e Américas da Chatham House, centro de estudos londrino. Os países do Oriente Médio, os EUA e a Europa desejam evitar uma guerra. As agressões que EUA e Irã estão dispostos a absorver, contudo, tornaram-se imprecisas.

— As linhas vermelhas foram implodidas. Há agora um processo de reacomodação das regras de engajamento na guerra. Não há como prever como essas novas regras serão, elas vão sendo talhadas conforme os acontecimentos se desenrolam — afirmou Hussein Kalout, ex-secretário de Assuntos Estratégicos do governo Temere pesquisador da Universidade de Harvard, que reforçou que um conflito generalizado lhe parece “improbabilíssimo”.

Por ora, o Iraque deve ser palco das principais repercussões. Dois dias depois das execuções de Soleimani e do comandante iraquiano que o acompanhava, Abu Mahdi alMuhandis, o Parlamento do país, dominado pela maioria xiita, votou a favor da expulsão dos militares americanos. A remoção de soldados do Oriente Médio faz parte da agenda de Trump, que já reduziu os efetivos no Afeganistão e na Síria. Pode acontecer o mesmo no Iraque, mas “não rápido demais, para não parecer que o Irã pôs os EUA para fora”, observou Christopher Mott, historiador especializado na história das guerras na Ásia Central.

Crescimento xiita

Desde que a invasão americana de 2003 derrubou Saddam Hussein, que pertencia à minoria sunita, Teerã desenvolveu significativa influência no Iraque, que sustenta aposição incômoda deter como principais parceiros os americanos e os iranianos. Essa influência vinha sendo crescentemente contestada pelos iraquianos, mas, com um ataque dentro de sua capital, “eles foram lembrados de que os EUA também não são uma boa influência”, acrescentou Mott.

É significativa, ainda, a chance de ataques cometidos por parceiros do Irã contra interesses ou militares americanos em território iraquiano — os chamados “ataques por procuração”. O país desenvolveu, como parte da estratégia elaborada pelo próprio Soleimani, uma sólida rede de aliados no Oriente Médio. A milícia iraquiana Kataib Hezbollah, à qual pertencia al-Muhandis, já disse que “as paixões devem ser evitadas para se alcançarem os resultados desejados”.

Os ataques podem se integrar a uma estratégia iraniana para aumentar seu poder de barganha. Sufocado pelas sanções dos EUA — segundo o FMI, a previsão é que a economia do país encolha 9,5% em 2020, depois de uma queda de 6% em 2019 —, o Irã anunciou que “não reconhecerá limites” às suas atividades de enriquecimento de urânio, distanciando-se do acordo de 2015. Ao fazê-lo, Teerã ressaltou que todas as ações podem ser revertidas, desde que as sanções dos EUA, que deixaram o acordo em 2018, “sejam eliminadas de forma imediata”. Na sexta-feira, Trump deu sinal em sentido contrário, anunciando novas punições.

Impacto global

Nesse cenário de tensão se inserem as outras potências globais, incluindo a Rússia, que tem interesse na redução da presença americana no Oriente Médio. Embora evites e envolver diretamente na disputa entre Washington e Teerã, Moscou é mais uma peça disponível no tabuleiro do Irã. O assassinato de uma alta autoridade de outro Estado também estabelece um “precedente em que outros países podem se inspirar”, como definiu Benjamin Friedman, do Defense Priorities, centro de estudos de Washington. Em seu conjunto, os eventos recentes apontam para um cenário global mais instável em longo prazo, disse o professor de Segurança Global da Universidade de Glasgow Peter Jackson.

— Os beneficiários do que aconteceu foram o Estado Islâmico e os xiitas. A maioria dos comentaristas vem se prendendo às consequências de curto prazo, masa questão são todas as implicações de longo prazo na região — afirmou Jackson.

— Há 15 anos previa-se que, ao final da intervenção americana no Iraque, o Irã sairia fortalecido. Hoje o país tem mais influência do que nunca na região.