O Globo, n. 31569, 12/01/2020. Economia, p. 32

‘Bolsonaro contraria interesses brasileiros’

Entrevista: Rubens Ricupero


O ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad) Rubens Ricupero afirma que a mudança na postura diplomática brasileira, de apoio aos Estados Unidos após a escalada de tensões com o Irã, trará consequências negativas para o comércio exterior brasileiro. Em entrevista por e-mail ao Globo, o diplomata de carreira lembra que Donald Trump tem ameaçado exportações do Brasil enquanto o Irã é grande cliente do nosso agronegócio. E alerta que o Brasil voltou a ficar vulnerável nas contas externas, o que já causou crises cambiais no passado, limitando o crescimento.

A tensão global vai afetar a economia brasileira?

No ano passado, a economia mundial em nada ajudou a economia brasileira, uma vez que houve queda acentuada nas exportações, nas importações e no saldo comercial. Em caso de agravamento do conflito dos EUA com o Irã, é claro que o impacto sobre a recuperação da economia brasileira se faria sentir de modo mais forte. Sobretudo porque não se deve esperar acurto prazo melhora no comércio coma Argentina, importante para a recuperação da indústria.

A mudança na diplomacia brasileira, de abandonar a neutralidade nesses conflitos, pode reduzir as exportações?

O endosso pelo Brasil à ação agressiva de Trump cria riscos para as exportações brasileiras ao Irã, um dos principais importadores de produtos agrícolas. Além dos aspectos morais (apoio a um crime, a um assassinato, a um ato de terrorismo de Estado) e políticos (alinhamento temerário com política capaz de conduzir à guerra), a atitude do governo Bolsonaro contraria os interesses comerciais brasileiros, já que hostiliza um mercado importante por meio do endosso a um país, os EUA, que são o único parceiro a já aplicar sanções ilegais contra nossos produtos (aço, alumínio), a nos ameaçar de novas sanções (declarações de Trump sobre desvalorização do real), a descumprir promessas anteriores (abertura do mercado à carne bovina) e o único que talvez, em poucos dias, alcance acordo coma China capaz de desviar compras chinesas de produtos brasileiros( soja, milho, carnes, etanol, algodão) para um de nossos concorrentes, os americanos. Onde está nisso o interesse nacional?

O déficit em transações correntes está em 3%, há risco?

Existe perigosa complacência de tentar minimizar a seriedade da deterioração do balanço de pagamentos mediante dois argumentos: que as reservas internacionais se situam em nível confortável e que o Investimento Estrangeiro Direto (IED) tende a superar os déficits mensais em conta corrente (contas com o resto do mundo).

Esses argumentos buscam esconder o mais grave: a dinâmica desfavorável de quase todos os indicadores. O nível das reservas é retrato do passado, reflete a fase em que o país acumulava excedentes na balança comercial. As reservas tendem a diminuir até mesmo em razão das ações do Banco Central contra a volatilidade do câmbio. Em 2019, vários fatores agravaram a situação da balança: queda sensível no volume e no valor das exportações e importações; expansão significativa do déficit em transações correntes;investimentos estrangeiros diretos para cobrir o déficit em alguns meses; e saída do Brasil da soma recorde de mais de US$ 44 bilhões (fluxo cambial), em desmentido à retórica oficial relativa ao interesse de investidores estrangeiros por ativos brasileiros.

O que torna o quadro mais preocupante é que, no ano passado, o comércio exterior se beneficiou de fatores que não devem se repetir, entre eles, o aumento das compras chinesas de produtos agrícolas, devido ao conflito com os EUA, e de carnes, durante incidência da peste suína. Em razão do crescimento anêmico da economia brasileira em 2019 (1,1% talvez), não houve pressão nas importações, o que mudará caso o ritmo de expansão acelere. Todos esses fatores mostram que o Brasil está em vias deperder um dos pouco sindicadores positivos que ostentava:a situação do balanço de pagamentos, origem de muitas crises brasileiras no passado (quando havia déficit).

O que se pode fazer?

Para essa ameaça, não existe remédio a curto prazo. A liberação comercial não é uma panaceia. Mesmo que o país consiga acelerar acordos comerciais, num primeiro tempo isso vai agravar a situação da balança, dada a falta de competitivida de crônica de setores de nossa economia. Daí a gravidade das ações do governo em meio ambiente, Amazônia, povos indígenas, evocação de AI-5, que assustam investidores e parceiros no exterior.

O acordo do Mercosul com União Europeia corre risco?

O acordo Mercosul-União Europeia se encontra numa espécie de “banho-maria”. Falta terminar parte considerável do acordo, que ainda não foi sequer assinado. Nas condições atuais de conflito do governo brasileiro com a França de Emmanuel Macron, à luz das resoluções dos parlamentos na Áustria, na Irlanda e em outros países, não se vislumbram condições a curto prazo para concluir o que falta ao acordo e submetê-lo à aprovação e ratificação do Parlamento Europeu e dos parlamentos dos 27 países membros.

Organismos multilaterais estão perdendo força, como a Organização Mundial do Comércio (OMC)?

O enfraquecimento da OMC é obra do governo Trump, ao qual o Brasil se subordina de forma automática e contrária aos interesses nacionais. É o que poderemos ver em breve, se o acordo a ser assinado pelos americanos com a China provocar, como se espera, desvio de comércio de produtos agrícolas brasileiros em favor de americanos. O Brasil não terá a quem se queixar, pois o sistema de solução de litígios da OMC terá sido desmantelado por Trump.