O Globo, n. 31569, 12/01/2020. Opinião, p. 2

Uma autocrítica necessária

Merval Pereira


O ex-senador e ex-ministro da Educação Cristovam Buarque sempre foi “um estranho no ninho” da política brasileira, sem se ligar a grupos sectários, nem ter medo de fazer críticas corporativas quando considerava necessário. Foi governador de Brasília e saiu do PT depois de ter sido demitido do Ministério da Educação por telefone, foi para o PDT e hoje está no Cidadania, antigo PPS.

Sempre na esquerda, nunca cedeu ao populismo nem ao radicalismo político. Por isso, é capaz de fazer uma autocrítica tão necessária à esquerda brasileira. É o que faz no e-book “Por que falhamos”, desenvolvido a partir de um convite da Universidade de Oxford para que fizesse uma análise das razões que levaram Bolsonaro à Presidência da República. A versão em inglês sairá em fevereiro com o título “How the left elected the right in Brazil” (“Como a esquerda elegeu a direita no Brasil”).

Para começar, ele dá razão ao ministro Paulo Guedes, colocando na mesma definição de democratas-progressistas os presidentes que governaram o país nos últimos 26 anos. “Apesar de partidos, ideologias e comportamentos diferentes, Itamar, Cardoso, Lula, Dilma e Temer vêm do mesmo grupo que lutou contra a ditadura e defendeu posições progressistas, em graus diferentes, na economia, na sociedade e nos costumes”.

Nesse período, que para ele poderia ter sido a “República dos Sonhos” e “acabou em pesadelo”, o Brasil “manteve a democracia, respeitou os direitos humanos, ampliou sua presença internacional, implantou programas de assistência com generosidade para a parcela mais pobre, conquistou e preservou a estabilidade monetária”.

Cristovam aponta os diversos erros cometidos, mas destaca o “erro mais visível para a opinião pública”: cair na corrupção, tanto no comportamento quanto nas prioridades. “Abandonamos fins revolucionários e adotamos meios corruptos, trocando prioridades básicas, como escolas por estádios, para atender ao gosto imediatista e eleitoral da sociedade e também para receber propinas nessas construções. Fizemos isso para atender a promiscuidade entre nossos governos e empreiteiras e permitir o roubo de dinheiro público para financiar campanhas eleitorais ou enriquecer pessoas, muitas delas de nosso bloco democrata-progressista, mas também corruptas”. Cristovam Buarque vê como consequência a perda da bandeira da ética e da confiança da população. “Sobretudo porque antes representávamos e nos apresentávamos como a reserva moral na política e prometíamos ser diferentes do comportamento dos políticos corruptos anteriores”.

Essa situação, escreve Cristovam Buarque, desmoralizou os líderes, degradou o Estado, trouxe a recessão, o desemprego e a violência “que permitiram à direita fazer o discurso de honestidade que o povo deseja. Entregamos à direita o discurso da ética, do emprego, da segurança, do crescimento, do valor da moeda”.

Cristovam Buarque cita escritor espanhol Jorge Semprún —“Nossa geração não está preparada para se recuperar do fracasso da União Soviética” — para dizer que “a nossa, no Brasil, ainda menos para se recuperar do fracasso dos governos que se sucederam entre 1992 e 2018”.

Admite que começa a sofrer “constrangimentos por termos um governo, escolhido pelo voto, que nos leva ao isolamento no cenário internacional. Sinto constrangimento, como democrata-progressista, por não termos oferecido ao eleitor uma alternativa de governo confiável para levar nosso povo na direção do futuro desejado e compatível com a marcha dos tempos atuais”.

Cristovam admite que o eleitor “fez essa trágica escolha como recusa aos governos que defendi e dos quais participei. O que me leva a perguntar em que erramos, a ponto de empurrarmos o eleitor ao gesto desesperado de optar pelo atual governo para fugir de nós, mesmo que isso sacrifique nosso povo e o Brasil ao longo de anos”. E conclui que “não estivemos à altura do desafio que a história e os eleitores nos ofereceram”.