O Globo, n. 31567, 10/01/2020. Sociedade, p. 23

Desmatamento deixa Amazônia à mercê de incêndios, diz cientista

Ana Lucia Azevedo


A Amazônia começa 2020 à mercê do fogo. O desmatamento de 2019 deixou no chão da floresta combustível para imensas queimadas na estação seca, que começa em maio. O alerta é da ecóloga brasileira Erika Berenguer, das universidades britânicas de Oxford e Lancaster.

Especialista nos efeitos das queimadas sobre a Floresta Amazônica, ela destaca que no ano passado o tempo úmido colaborou para evitar que o fogo se alastrasse ainda mais. Entretanto, o ano teve 30% mais focos de fogo do que 2018 devido, sobretudo, ao desmatamento ilegal.

— A explosão do desmatamento em 2019 fará com que neste ano vejamos a Amazônia em chamas. A não ser que se faça manejo do fogo e um trabalho de fiscalização eficiente, rigoroso.

Para este ano, não há previsão de seca na região. Porém, há a herança incendiária do aumento do desmatamento de 2019 — 29,5%, o maior percentual em duas décadas, com 9.762 km² de florestas arrasadas. E isso se for considerado apenas o período até 31 de julho, pois os números oficiais do Inpe analisam o período de 1º de agosto de um ano a 31 de julho do seguinte.

Dados do sistema Deter, do Inpe, não são consolidados, pois servem apenas como alerta. Porém, oferecem uma ideia da dimensão do problema. De1º de agosto a 17 de dezembro (última data com dados disponíveis), foram emitidos alertas para uma área de 4.420 km² de desmatamento.

— Há uma quantidade colossal de galhos, folhas e troncos de árvores derrubadas deixada no chão da mata. Na Amazônia quase todo o desmatamento é ilegal, e não dá para imaginar que desmatadores ilegais farão manejo do fogo, com incêndios controlados, para impedir que mais floresta seja destruída — diz Berenger.

Ela acrescenta que as matas nas bordas das áreas queimadas também se tornam vulneráveis, enfraquecidas pelo fogo. Naturalmente úmida, a floresta não tem resiliência aos efeitos dos incêndios.

As queimadas produzem um ciclo vicioso que deixa a floresta cada vez mais vulnerável, mostrou um estudo do grupo de Erika Berenger no Oeste do Pará. Os pesquisadores investigaram o impacto do fogo em unidades de conservação onde foram registradas queimadas em 2015, ano em que um dos maiores El Niños registrados provocou uma seca violenta, que facilitou a propagação do fogo.

Após quatro anos, em 2019, o verde havia voltado. Mas a floresta era outra.

As árvores gigantes, marcas registradas do bioma, deram lugar a uma vegetação rasteira e emaranhada. Essa mata nanica pós-fogo abriga menos espécies de plantas e animais e presta menos serviços ambientais. Nasceu também prisioneira do fogo, pois por ser seca, densa e fina é mais vulnerável e espalha mais as chamas do que a floresta úmida.

— São matas assim que muito provavelmente vão queimar na próxima estação seca —adverte a pesquisadora.

Diferentemente dos incêndios florestais da Austrália, causados por fatores meteorológicos — seca e calor extremos associados, em parte, a mudanças climáticas —, as queimadas que consumiram florestas na Amazônia no ano passado estão ligadas ao desmatamento.

As queimadas são usadas tanto para degradar a floresta, justificando depois sua derrubada, como para limpar áreas onde a mata foi derrubada. O fogo faz cinza das árvores caídas e abre caminho para pastagens e invasões de grileiros.

De modo diverso do da Austrália, que tem uma vegetação mais seca e sujeita a incêndios, a Amazônia é extremamente úmida. O fogo não faz parte da dinâmica dela, precisa ser provocado, diz Erika Berenger. Mesmo em anos excepcionalmente secos, como 2010 e 2015, não aconteceu na Amazônia nada semelhante à dimensão dos incêndios australianos.