O Globo, n. 31437, 02/09/2019. Rio, p. 10

Milícia já mata mais no Rio
Rafael Galdo
Selma Schmidt


Dos grupos de extermínio às milícias atuais, que enterram corpos em cemitérios clandestinos, a formação dos bandos e as atividades exploradas mudam. Mas a violência extrema não dá trégua. Hoje, a letalidade de milicianos chega a superar a do tráfico, afirmam promotores e policiais.

O quadro se reflete no número de prisões por mortes nos 18 municípios com Delegacias de Homicídios (DHs) este ano: foram 93 milicianos (dos quais pelo menos dez policiais) acusados de assassinatos, contra 58 traficantes, segundo o diretor do Departamento Geral de Homicídios e de Proteção à Pessoa, delegado Antônio Ricardo Nunes.

As ações brutais explodem em Queimados. O promotor Fábio Corrêa, do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco/MPRJ), diz que, em 2016, ao mesmo tempo que esses grupos criminosos se expandiam no município, os homicídios davam um salto. A cidade foi para o topo do ranking do Atlas da Violência no país, realizado pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com 134,9 homicídios a cada 100 mil habitantes.

— O tráfico avançava quando a milícia chegou vendendo “segurança”. O número de homicídios foi elevadíssimo. Depois de certo tempo, com a milícia já consolidada, esse índice começa a se estabilizar — afirma Corrêa, lembrando que a cidade da Baixada ainda é a quinta mais violenta do país.

— Em Queimados e em Belford Roxo, a milícia é o maior causador de homicídios, muitas vezes, com a aproximação com políticos. A Baixada é um caldeirão.

Fila para entrar

Há dois anos, em meio à guerra, paramilitares encapuzados invadiram a casa de uma faxineira no Morro São Simão, em Queimados, e levaram o filho dela, de 21 anos, usuário de droga. O corpo foi encontrado 12 horas depois, em Nova Iguaçu. Na delegacia, a mãe soube que ele tinha sido morto por um grupo paramilitar.

— O São Simão ainda é do tráfico. Mas Queimados é das milícias. As comunidades que não fecham com eles vivem no inferno — conta a mãe.

Nas contas do Departamento Geral de Homicídios, a Região Metropolitana do Rio está ocupada, hoje, por cerca de mil milicianos e seus “empregados”. Estes ganham entre R$ 1.500 e R$ 2 mil por semana.

Na Baixada e em cidades como Itaboraí, há franquias de grandes milícias do Rio. E também grupos mais pulverizados, como os que atuam em Queimados e Belford Roxo, mantendo algum grau de dependência dos principais bandos.

Só na maior milícia do Rio, as investigações do Gaeco identificaram cerca de 500 integrantes num grupo de WhatsApp. Além de bairros como Santa Cruz, o promotor Jorge Furquim afirma que o grupo paramilitar também estende seus tentáculos para municípios como Itaguaí. Lá, onde foi descoberto um cemitério clandestino em agosto do ano passado, os criminosos, de acordo com ele, exigem taxas em 70% dos bairros. E exploram atividades como venda de gás e cigarros contrabandeados, além de monopolizarem a distribuição de água mineral. Para manter esse mercado tão diversificado, os criminosos recrutam jovens.

— Há fila de espera para entrar na milícia. As pessoas ingressam no grupo por indicação. Se prendemos um miliciano, logo há alguém para ocupar a vaga — conta Furquim. Em Itaguaí, como em outras regiões, a milícia está associada ao tráfico.

— Com a facção maior, os milicianos fazem guerra. Com outra, há acordos, inclusive para alugar pontos de vendas de drogas — diz o sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Uma aliança que ocorre em Queimados, onde milicianos estão entrincheirados em condomínios do Minha Casa Minha Vida e, em alguns casos, envolvidos no negócio de droga. Leandro Costa, delegado da DH Baixada, investiga três bandos:

— No bairro São Jorge, eles traficam. Na região do Belmonte, têm uma associação com o tráfico. Também há milícia no bairro Independência.

No último dia 23, Costa participou de uma operação para tentar prender Ronald Elias Pereira Valente, o Jaquinha, de 25 anos, acusado de chefiar uma das milícias de Belford Roxo eque responde por homicídio, tortura, estelionato, sequestro e associação criminosa.

Encarnando uma nova característica das milícias, que já não são majoritariamente formadas por agentes de segurança, Jaquinha é civil. Muitos vêm do tráfico, embora tenham policiais na retaguarda. Pesquisadores e promotores já falam em “narcomilícias” ou “mercenários”.

O próprio Wellington da Silva Braga, o Ecko, líder da maior milícia do Rio, nunca foi policial. Na região em que ele atua, há cerca de um mês, policiais apreenderam um pacote de maconha, na comunidade da Coreia, em Senador Camará, com símbolos de uma facção do tráfico e da milícia e o aviso: “qualquer violação reclame na boca”.

— A milícia, que se expande de forma perigosa, hoje é um problema maior que o tráfico — afirma o coronel Robson Rodrigues, antropólogo do Laboratório de Análises da Violência da Uerj.