O Globo, n. 31566, 09/01/2020. País, p. 4

Censurado

Rayanderson Guerra
João Paulo Saconi


O desembargador Benedicto Abicair, da 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, determinou ontem que a Netflix retire de sua plataforma o “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo”, que retrata satiricamente Jesus Cristo como homossexual. A censura foi noticiada pelo blog do colunista Ancelmo Gois, no site do GLOBO. O magistrado decidiu ainda pela suspensão de trailers, propagandas, ou “qualquer alusão publicitária ao filme” na Netflix e em outro meio de divulgação.

O desembargador atendeu a uma recurso da Associação Centro Dom Bosco de Fé e Cultura e argumentou que ainda não há como decidir se houve incitação ao ódio público por parte da produtora de vídeo e “com quem está a razão”, mas que, para “acalmar os ânimos” da sociedade, entende ser “mais adequado e benéfico” suspender a exibição.

Ao GLOBO, a produtora Porta dos Fundos disse que ainda não foi oficialmente notificada sobre a decisão. Já a Netflix informou que não irá se manifestar.

Divulgado em dezembro do ano passado, o especial de Natal do Porta dos Fundos gerou críticas de grupos religiosos. No filme de 46 minutos, Jesus (interpretado pelo ator Gregório Duvivier) está prestes a completar 30 anos, e é surpreendido com uma festa de aniversário quando voltava do deserto acompanhado do namorado, Orlando (Fabio Porchat). Após a repercussão do especial, a sede da produtora no Rio foi atacada com coquetéis molotov, na véspera do Natal. A polícia acredita que cinco pessoas participaram da ação, entre elas o empresário Eduardo Fauzi, que assumiu a autoria do ataque.

Críticas à liminar

Ontem, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello criticou a decisão do desembargador do TJ do Rio, em entrevista ao blog do colunista Bernardo Mello Franco. Para o ministro, a suspensão caracteriza censura, não tem amparo na Constituição e será derrubada pelos tribunais superiores.

— É uma barbaridade. Os ares democráticos não admitem a censura — avaliou Marco Aurélio.

Em nota, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, se posicionou contra a decisão e afirmou que qualquer forma de censura ou ameaça à livre expressão, garantida na Constituição, “significa retrocesso e não pode ser aceita pela sociedade”.

Na decisão, o desembargador Benedicto Abicair defendeu que o direito à liberdade de expressão, imprensa e artística “não é absoluto”. Ele argumentou que essas liberdades “são primordiais e essenciais na democracia”, mas “não podem servir de desculpa ou respaldo para toda e qualquer manifestação, quando há dúvidas sobre se tratar de crítica, debate ou achincalhe”. Para o magistrado, a suspensão é mais adequada e benéfica “não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã”.

A constitucionalista Vera Chemim, mestre em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), afirma que o desembargador analisou o caso com base no conflito entre dois princípios constitucionais: o da liberdade de consciência e de crença (inciso VI do artigo 5º) e o da liberdade de expressão da atividade intelectual e artística, independentemente de censura

ou licença (inciso IX do artigo 5º). Chemim diz que o magistrado deve fazer uma ponderação e decidir pelo bom senso, o que não ocorreu, na sua visão:

— É de notório saber que o Porta dos Fundos trabalha com sátiras em seus programas. Não há como dizer que houve desrespeito, do ponto de vista constitucional. Podese até afirmar que houve um desrespeito do ponto de vista moral e religioso por parte de quem se diz ofendido, mas o Direito deves eaterà legislação eà Constituição. O próprioSTF tem decidido no sentido da ampla liberdade de expressão. Essa liminar deve cair nos tribunais superiores.

O pedido de suspensão já havia sido negado em primeira instância pela juíza Adriana Sucena Monteiro Jara Moura e em recurso por um desembargador de plantão. Após o recesso de fim de ano no tribunal, a relatoria do processo ficou com Abicair.

Decisão oposta

O desembargador relatou em novembro de 2017 um processo no qual o presidente Jair Bolsonaro, então deputado federal, foi condenado em segunda instância a pagar indenizações por dano moral em ação movida por grupos de defesa dos direitos LGBT que o acusaram de ter dado declarações homofóbicas e racistas. Na ocasião, Abicair foi a favor de um recurso de Bolsonaro contra a condenação. Em seu voto, ele escreveu que, em uma democracia, não via como “censurar o direito de manifestação de quem quer que seja”.

Bolsonaro era réu por ter dito ao programa “CQC”, da TV Bandeirantes, que não teria filhos gays porque os seus “tiveram boa educação”. Abicair defendeu que o programa ao qual Bolsonaro deu as declarações tinha o objetivo de proporcionar diversão e que “aqueles que comparecem àquele programa são sabedores de que, ali, ocorrerão polêmicas e debates acirrados e pouco respeitosos, posto que esse é o objetivo da grade”.

Ao encaminhar para conclusão, Abicair afirmou: “Não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja. Gostar ou não gostar. Querer ou não querer, aceitar ou não aceitar. Tudo é direito de cada cidadão, desde que não infrinja dispositivo constitucional ou legal”.

“O direito à liberdade de expressão, imprensa e artística não é absoluto” 

Benedicto Abicair, desembargador do TJ do Rio, ao censurar especial do Porta dos Fundos

“Não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja”

Benedicto Abicair, em 2017, ao votar contra condenação do então deputado Jair Bolsonaro, acusado de homofobia e racismo

“É uma barbaridade. Os ares democráticos não admitem a censura”

Marco Aurélio Mello, ministro do STF, ao comentar a decisão do desembargador que censurou o especial