O Globo, n. 31565, 08/01/2020. Economia, p. 17

Polêmica

Manoel Ventura
Daniel Gullino
Jussara Soares
Ramona Ordoñez
Stephanie Tondo


Após forte pressão do presidente Jair Bolsonaro, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) deve abrir mão da proposta de reduzir incentivos para quem produz a própria eletricidade por meio de painéis solares. O assunto dividiu o governo e deixou em lados opostos o presidente e o Ministério da Economia. A agência reguladora quer que o assunto seja agora decidido pelo Congresso. Deputados já têm praticamente pronto um projeto de lei para tratar da geração distribuída, quando uma residência ou comércio gera sua própria eletricidade.

O assunto é polêmico. Empresas ligadas ao setor de energia solar avaliam que haverá um desincentivo à instalação de painéis e que isso inibirá o crescimento de uma fonte de energia limpa em um momento de retomada da atividade econômica, com impacto não só sobre o setor como no meio ambiente. Os defensores da taxação argumentam que o benefício era temporário e que o custo hoje recai sobre o restante da população, inclusive o segmento mais pobre.

A pressão do presidente sobre a Aneel gerou desconforto em uma ala da agência que, por lei,é independente. A diretoria do órgão é composta por cinco integrantes, todos indicados pelo presidente da República e com mandatos de quatro anos. Para parte da Aneel,a agência deveria seguir com as discussões, mesmo que depois a medida fosse alterada pelo Congresso.

— Eu que estava pagando o pato, então decidi, ninguém mais conversa. Quem conversar, eu demito. Cartão vermelho. E decidi, acertando com Davi Alcolumbre, com Rodrigo Maia. Tanto é que a Aneel no dia de ontem (segunda-feira), pelo que estou sabendo, (decidiu que) não vai mais taxar. Não vai mais precisar nem de projeto da Câmara, pelo que ouvi ontem —disse Bolsonaro, pela manhã.

Após se reunir com Rodrigo Limp, diretor da Aneel e relator da proposta, à tarde, Bolsonaro reiterou que a taxação está descartada:

— Acertamos a questão de não taxar o sol. Sol, fique tranquilo, não serás taxado — disse o presidente apontando para o céu na chegada do Palácio da Alvorada.

Limp saiu sem falar com a imprensa. Oficialmente, a agência não confirma que deixará de discutir o assunto e diz que decisões desse tipo só podem ser tomadas pela sua diretoria colegiada. Mas o próprio órgão, em reuniões internas, já avaliava frear a discussão e deixar a decisão para os parlamentares, diante da polêmica.

O porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, disse que não avançar na medida foi “posicionamento pessoal” de um diretor da Aneel:

— Não vejo de forma alguma qualquer imposição do presidente junto à agência. Isso vai provocar discussão mais sadia.

Bolsonaro havia procurado os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e recebido apoio dos dois para derrubar eventual retirada de estímulos. O presidente ainda afirmou que a medida atenderia a um“grupo de lobistas ”, sem especificar quem.

— Existia gente interessada em taxar, tá certo? Interessado em taxar. É o tempo todo taxando o povo. Temos que reagir a isso daí. Não existe negociação comigo para atender qualquer grupo de lobistas —afirmou.

O tema chegou ao presidente em outubro, durante viagem à China, por representantes de empresas que trabalham nesse setor. Mas a articulação para derrubar a proposta da Aneel ganhou força no último fim de semana, quando Bolsonaro conversou com Heber Galarce, diretor da Associação Brasileira de Geração Distribuída (ABGD).

— A gente falou com ele que, devido à estrutura do setor elétrico brasileiro, é difícil transformar em números todos o benefícios. O presidente entendeu a demanda e disse que iria nos ajudar —disse o presidente da ABGD, Carlos Evangelista.

— Ele sabe os limites que tem o órgão regulador. Não faz sentido um órgão regulador com cinco diretores decidir sozinho uma coisa que afeta tanto a sociedade.

O argumento contra a taxação é que a medida da Aneel poderia ter impacto social, com fim de empregos qualificados. Além disso, chegou ao presidente que a Aneel estaria sensível ao lobby de distribuidoras e de empresas tradicionais de geração de eletricidade. O setor do agronegócio e integrantes da bancada ruralista avisaram que são contra a proposta da Aneel. Críticas recebidas nas redes sociais pesaram na decisão de Bolsonaro.

A economista e advogada Elena Landau, ex-presidente do conselho da Eletrobras, considerou “desastrosa” a interferência de Bolsonaro na Aneel em relação ao subsídio à energia solar:

— É desastroso porque passa por cima da agência reguladora, que estava fazendo o trabalho dela, com consulta pública, audiência. É uma interferência política em um assunto passando por cima da agência, e com o apoio do Congresso Nacional, o que é pior. É um péssimo sinal, mais um elemento de insegurança jurídica.

O ex-diretor da Aneel Jerson Kelman avalia que o tema, técnico, deve ser discutido pelo órgão regulador:

— A Aneel propõe eliminar o desconto na conta de luz que beneficia os “com placa” fotovoltaica. Essa aparente maldade se explica porque a Aneel também se preocupa com os “sem placa ”, cujas contas de luz são oneradas. O incentivo à energia solar, que foi muito importante no início, talvez não seja mais necessário.

Ganho de escala

A energia solar corresponde a apenas 1,45% da capacidade de geração no país. Segundo Ronaldo Koloszuk, presidente do conselho da Associação Brasileira de Energia Fotovoltaica (Absolar), qualquer mudança só deveria ser feita quando o setor tivesse participação maior:

— Na Califórnia, só passaram a taxar a energia solar quando essa fonte chegou a uma participação de 5% no mercado consumidor.

Nos últimos anos, porém, o setor ganhou escala. Para uma residência de quatro a cinco pessoas, o custo de instalação fica entre R$15 mil e R$20 mil, com retorno de investimento em três a sete anos. A proposta da Aneel previa regra de transição. Quem já tem o sistema instalado ou pedir autorização para instalar até a publicação da nova regra ficaria dentro das regras atuais até dezembro de 2030.

Entenda o que está em discussão

> O que a Aneel propõe

A agência propõe subsídio menor para quem gera a própria energia, no modelo de geração distribuída. Nele, o consumidor passa a produzir energia em casa ou no trabalho. Ela pode ser consumida imediatamente ou transmitida para a rede distribuidora, que funciona como uma bateria. Com a mudança, o consumidor passaria a pagar pelo uso da rede e pelos encargos na conta de luz. A cobrança seria feita em cima da energia que receber de volta da distribuidora, não sobre o que é consumido imediatamente.

> Regra em vigor

Há incentivos como a isenção do pagamento de tarifas pelo uso do sistema elétrico. A tarifa de energia é composta por vários fatores. Entre eles, estão os custos da compra de energia, de transmissão de eletricidade, além de encargos setoriais. Esses valores são pagos por quem não tem geração distribuída.

> Incentivo vem desde 2012

A autorização para gerar a própria energia foi dada em 2012. Em 2015, foi previsto que a norma passaria por revisão em 2019.

> Comércio tem maior potência Casas, comércios, indústria e o próprio poder público podem usar o sistema. Em número de instalações, 72% são em residências, e 18%, no comércio. No entanto, em termos de potência, o comércio tem a maior capacidade instalada (40%), seguido das residências (36%).

> Fazendas solares

A proposta muda regras para fazendas solares, nas quais consumidores se reúnem em uma espécie de condomínio, gerando energia fora de seus prédios e usando a rede da distribuidora para transportar a energia. O benefício é usado por bancos e supermercados. Segundo a Aneel, o problema é que não há pagamento pelo uso da rede.