O Globo, n. 31562, 05/01/2020. Mundo, p. 36

Agonia atômica

Renato Machado



O mundo inteiro aguarda apreensivo a prometida retaliação do Irã ao ataque dos Estados Unidos que resultou na morte do poderoso general Qassem Soleimani. Mas a primeira resposta de Teerã não deve ser direcionada aos americanos ou seus aliados, muito menos deverá ser uma operação militar. Amanhã, espera-se que os iranianos anunciem uma nova redução no cumprimento do acordo nuclear firmado entre o país e as principais potências globais em 2015, conhecido pela sigla JCPOA. Como a decisão será tomada no calor da perda do carismático militar, segunda personalidade mais importante do país, muitos temem uma medida drástica, até mesmo a saída do pacto.

Em maio de 2019, quando completou-se um ano da retirada dos EUA do acordo no qual Teerã abriu mão formalmente de construir a bomba, o Irã anunciou que encerraria a sua fase de“paciência estratégica” e que passaria a reduzir gradualmente seu comprometimento com o que havia sido negociado. A cada 60 dias, caso as partes remanescentes — principalmente a União Europeia — não implementassem formas de evitar que os iranianos sofressem com as sanções econômicas impostas por Donald Trump, novos passos para a retomada de atividades nucleares suspensas desde 2015 seriam tomados. O primeiro passo do Irã foi anunciar que não limitaria sua reserva de combustível nuclear aos 300 quilos previstos no acordo. Depois, os iranianos passaram a enriquecer urânio a um nível de pureza superior a 3,67% e derrubaram os limites a seu programa de pesquisa nuclear. No último passo, em novembro, o país começou a injetar gás de urânio em 1.044 centrífugas na sua usina nuclear de Fordow. A expectativa em relação ao anúncio desta semana, que já era alta, aumentou por causa do assassinato de Soleimani na madrugada da última sexta-feira, em um ataque dos EUA em Bagdá, no Iraque.

— Isso definitivamente vai afetar os próximos passos do Irã no JCPOA — disse Hamed Mousavi, professor de ciências políticas da Universidade
de Teerã, que acredita que o anúncio desta segunda-feira deverá marcar uma posição forte, mas ainda não será a ruptura definitiva com o acordo. O analista político iraniano Seyed Mostafa Khoshcheshm também acredita que a morte de Soleimani terá um grande peso na decisão desta semana. No entanto, ele não descarta a retirada completa do pacto, uma vez que a ação americana elevou ainda mais a tensão entre os dois países.

— Os EUA ultrapassaram a linha vermelha com esse ataque. Eles já haviam se retirado unilateralmente do acordo, mas agora extinguiu-se qualquer chance de negociação — disse Khoshcheshm.

Ele acrescenta que o mais provável é que o Irã anuncie uma redução considerável do seu comprometimento com o acordo, elevando suas atividades nucleares. E não descarta algo mais drástico:

— Não seria surpresa nenhuma se [as autoridades] anunciarem a retirada definitiva do acordo, já que as chances de negociação com os americanos acabaram. Do lado europeu, calcula-se que novos passos na retomada do programa nuclear iraniano possam significar o fim do JCPOA, mesmo sem uma retirada formal por parte do Irã. “Diplomatas europeus instaram o Irã a não avançar em seu programa de tecnologia nuclear, e assim preservar uma margem para salvar o JCPOA. Depois de ontem [sexta-feira], considero certo que ouviremos esses novos passos do Irã na segunda-feira. Drones também podem matar a diplomacia”, tuitou o diplomata e ex-primeiro-ministro da Suécia Carl Bildt.

Trump pode gostar

Ironicamente, o desmantelamento completo do acordo nuclear tenderia a agradar os EUA. Isso porque, em outubro de 2020, após cinco anos da entrada em vigor do JCPOA, prevê-se o fim do embargo de armas ao Irã e de sanções impostas a figuras do regime — como a proibição de viagens que era aplicada ao general Soleimani, entre outros militares da Guarda Revolucionária. Claro que, mesmo com o acordo em vigor, os EUA poderiam barrar o fim do embargo no Conselho de Segurança da ONU, mas isso tenderia a provocar desgaste político com seus aliados europeus, avaliam analistas. Ao mesmo tempo, o fim do acordo desagradaria Rússia e China, que mantêm boas relações com o Irã. Nas ruas de Teerã, uma possível retirada do acordo não é encarada como uma resposta ao assassinato do general Soleimani. Em uma grande manifestação pela morte do militar ontem, na Praça da Palestina, jovens e adultos pediam ações duras para vingar o general.