O Globo, n. 31439, 04/09/2019. País, p. 4

Canetada calculada
Daniel Gullino
Jussara Soares
Victor Farias


Perto do prazo final para decidir quais vetos fará no projeto que regulamenta o abuso de autoridade, o presidente Jair Bolsonaro ainda discute com os ministros a amplitude de sua decisão. Uma reunião na tarde de hoje no Palácio do Planalto vai sacramentar o texto final, que está sendo preparado pela Subchefia de Assuntos Jurídicos (SAJ), comandada pelo ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira. Segundo auxiliares que acompanham a discussão, os artigos indeferidos devem superar os 20 vetos, número mencionado como parâmetro ontem por Bolsonaro.

Desde que o Congresso aprovou o projeto, o presidente vem recebendo sugestões de vetos de várias origens, entre as quais o Ministério da Justiça, a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Controladoria Geral da União (CGU).

— O (ministro da Justiça, Sergio) Moro propôs, se eu não me engano, dez vetos. Nove eu já acolhi, um eu estou discutindo. Agora, terão mais vetos. Devem chegar a quase 20. Mas tem artigo que tem que ser mantido porque é bom. Quase 20. Por aí. Se não, vão falar depois que eu recuei — disse o presidente, na saída do Palácio da Alvorada.

O prazo para a decisão vence amanhã, mas a expectativa é a de uma decisão final ainda hoje. Ontem, Bolsonaro convocou os ministros da Secretaria-Geral, Justiça, da AGU, André Luiz Mendonça, e da CGU, Wagner Rosário, para discutir todas as sugestão de vetos enviadas por eles, além das dez apresentadas pelo líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO).

Entre os ministros, Sergio Moro apresentou dez sugestões de veto, e Mendonça outras 14 propostas de indeferimentos. A CGU também propôs retirar vários trechos da lei aprovada pelo Congresso. Há ainda pedidos de veto pela área internacional do governo com base no posicionamento do Grupo de Trabalho sobre Suborno da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que manifestou preocupação com a independência de juízes e procuradores no combate à corrupção. A lei tem 45 artigos, mas os vetos podem ser apenas sobre incisos. Bolsonaro não revelou ainda quais pontos vai retirar do texto.

— Não vou falar, porque se não, se eu falar, “é o artigo 30”, e não é, vão falar que eu recuei.

O ministro da Controladoria-geral da União (CGU) afirmou ontem que uma lei de abuso de autoridade “mal escrita” pode “inviabilizar” o combate à corrupção.

— Uma lei de abuso de autoridade com aspectos de interpretação muito abertos, isso sim pode dificultar a atuação dos atores. Qualquer ato e pode ser interpretado de maneira equivocada. Uma lei de abuso de autoridade não é contra a corrupção, mas, se mal escrita, ela pode inviabilizar o combate — disse Wagner Rosário.

Na semana passada, Moro sugeriu ao presidente a exclusão de nove dispositivos do projeto. Na lista estão os artigos que proíbem prisões em “desconformidade com a lei”, flagrante preparado e uso de algemas quando o preso não oferece resistência à ação policial.

Caso volta ao Congresso

Após o pedido de Moro, Major Vitor Hugo também enviou ao presidente outra relação com dez artigos que poderiam ser vetados. Em declaração a favor do espírito da lei, Bolsonaro já afirmou que membros do Ministério Público cometem abuso de autoridade em diversas ocasiões e que ele mesmo foi vítima disso.

No Congresso, líderes prometem derrubar alguns dos vetos. O relator da proposta na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), já afirmou que trabalhará para manter ao menos quatro pontos que podem ser barrados por Bolsonaro: a condenação por negar ao interessado acesso aos autos de investigação; a possibilidade de perda do cargo, mandato ou função pública a partir da condenação (em caso de reincidência); a condenação por obtenção de prova por meio manifestamente ilícito; e decretar prisão ou deixar de conceder liberdade em manifesta desconformidade com a lei. A pedido do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), Barros preparou um texto com os principais argumentos a favor da lei.

Já no Senado, um grupo de senadores entregou ao ministro Sergio Moro manifesto pedindo o veto integral ao projeto. O texto recebeu 33 assinaturas de parlamentares de 13 partidos.

O número representa mais de um terço dos 81 senadores, mas é insuficiente para garantir que um eventual veto do presidente seja mantido pelo Congresso. Isso porque, para a rejeição de um veto, é necessária a maioria absoluta dos votos de deputados (257) e senadores (41). Se não se chegar a este número, o veto estabelecido pelo presidente fica mantido.

Pontos da lei questionados por Moro e deputados

Prisão contrária à lei

O artigo do projeto prevê punição ao juiz que decretar prisão em “desconformidade com a lei”. O ministério da Justiça argumenta que o texto tira a “discricionariedade” do magistrado e limita sua atuação ao não trazer balizas claras para enquadrar o que seria considerado crime.

Flagrante preparado

O projeto torna crime “induzir ou instigar pessoa a praticar infração penal com o fim de capturá-la em flagrante delito, fora das hipóteses previstas em lei”. A avaliação dos críticos é que o tema pode afetar negativamente investigações ao criar uma zona cinzenta na distinção entre flagrante preparado e flagrante esperado.

Uso de algemas

O projeto pune o uso de algemas sem resistência à prisão. Há críticas de que essa decisão tem de ser do policial, no momento da ação. Este está entre os dez vetos sugeridos por deputados ao presidente.

Perseguição a inocente

O texto prevê punição a quem “proceder à persecução penal, civil ou administrativa sem justa causa fundamentada ou contra quem sabe inocente”. Moro sugere o veto, pois a legislação já veda a conduta.

Deixar de corrigir erro

O texto prevê punição ao agente que corrigir erro relevante em processo, o que é considerado como uma “responsabilidade muito ampla e impossível de ser cumprida” de fato.