O Globo, n. 31562, 05/01/2020. País, p. 4

Fidelidade à prova

Camila Zarur


Após um ano em que brigas internas dos partidos se tornaram públicas e notórias, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) iniciará 2020 com 40 deputados federais envolvidos em processos de fidelidade partidária — todos referentes ao ano passado, o primeiro da legislatura atual na Câmara. O número é maior do que a soma de todos os casos do tipo nos quatro anos anteriores.

Só em 2019, houve 37 pedidos de parlamentares para justificar a saída do partido pelo qual foram eleitos. Entre eles, dois grupos se destacam: aqueles que pediram a justa causa por ter proximidade com o presidente Jair Bolsonaro (a ala bolsonarista do PSL, por exemplo), e os que divergiram da orientação das legendas na votação da Reforma da Previdência na Câmara (PDT e PSB). Em outros três casos, deputados são alvo de pedido de perda de mandato. Se a maioria das ações foi para justificar a desfiliação partidária em 2019, o cenário era o oposto na legislatura passada: de um total de 32 casos, 30 pediam a punição de parlamentares que trocaram de legenda.

As disputadas que têm Jair Bolsonaro como pivô não se restringiram aos pesselistas. Em agosto, o deputado Aluísio Mendes pediu justa causa para sair do Podemos sob alegação de que sua proximidade com Bolsonaro estaria lhe causando retaliações dentro da legenda. Mesmo sem o trânsito em julgado do processo, o parlamentar já conseguiu migrar para o PSC. O cientista político e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carlos Pereira explica que um dos motivos para essa mudança na comparação com outros anos é o aumento de poder dos líderes partidários em relação a seus colegas de bancada. — Se de repente um membro do partido se comporta contra o líder e nota que está sofrendo retaliação no sentido de não integrar mais nenhuma comissão ou ocupar relatorias e presidências, que são definidas pelo líder, a sua significância no Congresso cai drasticamente. Por isso que agora os deputados atuam em busca de alternativas junto à Corte Eleitoral para tentar preservar os seus mandatos — explica Pereira, que completa: — Antes eram os partidos que viam essa migração como ameaça. Agora, são os deputados.

Processo de suplentes

Entre os casos referentes a perda de mandato nas mãos do TSE está o do deputado Evandro Roman (PSD-PR), que tem dois processos contra ele abertos por suplentes. Roman saiu do PSD e filiou se no Patriota com intenção de se candidatar a prefeito da cidade de Cascavel, no oeste do Paraná, este ano. O levantamento do GLOBO levou em conta apenas casos em que o atrito entre parlamentar e partido foi parar na Justiça. Houve outras brigas internas nas legendas em 2019 . O deputado Marco Feliciano foi expulso do Podemos pela aproximação com Bolsonaro. Já Alexandre Frota (PSDB-SP) deixou o PSL por críticas ao presidente.

O deputado federal Felipe Rigoni (PSB-ES) é um dos parlamentares com processo no TSE. Ele entrou com a ação para justificar a saída do partido após a votação da Previdência na Câmara. — Tenho uma relação positiva com o partido, apesar do atrito. Mas a percepção é que o meu pensamento não cabe mais no PSB, devido às perseguições que ocorreram por causa da Reforma da Previdência. Eu pedi para sair do partido e continuo com essa intenção — explica o deputado, que aguarda a decisão do relator sobre seu processo no TSE. O advogado especialista em Direito Eleitoral Eduardo Damian aponta que o movimento de renovação política como fator para aumento do número de processos . Rigoni, por exemplo, é vinculado ao movimento Acredito.

— A entrada de novos nomes, muitas vezes, ocorre sem o pleno conhecimento da vida e estrutura partidária. A insatisfação surge no dia a dia da política e assim eles buscam justificativa para se desfiliar, no afã de se candidatar na próxima eleição —afirma Damian, citando a proximidade com as eleições municipais deste ano. Na legislatura anterior, 2016 foi o único ano a registrar um número alto de ações motivadas por fidelidade partidária. Um processo aberto pelo Partido da Mulher Brasileira (PMB) que discutia o uso do fundo partidário pela legenda pediu a perda do cargo de 20 deputados federais de uma só vez. No entanto, a advogada Karina Kufa, que na época atuava pelo PMB, explica que a abertura dessa ação foi um erro e que o próprio TSE julgou o caso improcedente em relação à perda de mandato.

Expectativas para 2020

O ex-ministro do TSE Admar Gonzaga é um dos advogados no processo em que 26 deputados federais pedem justa causa para se desfiliar do PSL. Ligados a Bolsonaro — incluindo o filho do presidente Eduardo Bolsonaro — os parlamentares alegam perseguição política após terem pedido mais transparência ao presidente da sigla, Luciano Bivar. Gonzaga está otimista com o desfecho da ação.

— A expectativa é que o processo seja deferido, até porque já ganhamos outras ações contra o partido a respeito das suspensões que os deputados sofreram na Câmara — explica o ex ministro. Nenhum dos processos iniciados transitou em julgado, mas três deles já tiveram decisões. No caso do deputado Aluísio Mendes, do Maranhão, a Justiça autorizou sua ida do Podemos para o PSC. Já o deputado Professor Israel Batista, do Distrito Federal, alegou perseguição dentro do PV e entrou com processo de saída por justa causa. O pedido, porém, foi negado pelo TSE. Já o PSB pediu a perda do mandato do deputado piauiense Átila Lira, expulso após a votação da Reforma da Previdência na Câmara, mas sem sucesso. Atualmente, Lira está filiado ao PP e continua com suas atividades no Congresso.

“Antes eram os partidos que viam essa migração como ameaça. Agora, são os deputados” Carlos Pereira, cientista político e professor da FGV

“A percepção équeomeu pensamento não cabe mais no PSB, devido às perseguições.” Felipe Rigoni, deputado federal (PSB-ES)