O Globo, n. 31609, 21/02/2020. Economia, p. 19

Injeção de ânimo
Gustavo Paul
Renato Andrade
Geralda Doca
Daniel Gullino
Pollyanna Brêtas



O governo anunciou ontem duas importantes medidas com potencial de estimular o crescimento da economia em 2020. De um lado, o Banco Central comunicou a liberação em março de R $135 bilhões na economia, fruto da mudança nas regras de depósitos compulsórios, aqueles recursos que os bancos são obrigados a deixar depositados no Banco Central. Em outra ponta, a Caixa Econômica Federal lançou uma linha de crédito imobiliário com juros prefixados, voltada principalmente para a classe média, que promete prestações mais em conta no longo prazo.

São dois pilares importantes da atividade econômica. Para não ter os recursos parados no seu caixa, os bancos tendem a incrementar a oferta de crédito, fundamental para o aumento da atividade econômica. Não há possibilidade de R$ 135 bilhões ficarem no caixa das instituições. É plausível imaginar que emprestar o dinheiro é um caminho que deverá ser percorrido por todos.

Apostar no crédito imobiliário é medida clássica, pois a construção civil tem efeito multiplicador. A estimativa de crescimento de 3% para o setor este ano pode ser revista para cima, caso os lançamentos excedam as expectativas.

O governo Jair Bolsonaro usa o que tem à disposição para evitar mais um ano de atividade fraca. As medidas são anunciadas em um momento crítico, quando começam a surgir revisões para baixo nas previsões de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para 2020. Uma injeção de ânimo será providencial, pois no início de março serão divulgados os números fechados de 2019, e espera-se crescimento pouco acima de 1%.

Há um consenso no mercado de que 2020 começou em ritmo mais fraco do que se esperava. Além do temor do efeito do coronavírus na China, maior parceiro comercial brasileiro, os indicadores mais recentes geraram preocupação. O número de 2019 do IBC-BR, índice do Banco Central que antecipa a tendência do PIB, ficou abaixo do previsto, e as projeções do relatório Focus, também do BC, para a atividade neste ano caíram de 2,31% para 2,23%.

As medidas de ontem se somam a outras em vigor. A taxa básica de juros chegou a 4,25% ao ano na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), um piso histórico e inédito, que abre oportunidades ao mercado de capitais.

Caixa lança linha de crédito imobiliário com juros fixos

Em uma ofensiva do governo para estimulara economia, sobretudo o setor da construção civil, a Caixa Econômica Federal lançou ontem o crédito habitacional com juros fixos. Disponível nas agências apartir de hoje, a linha é inédita e permitirá a compra de imóveis novos e usados com prazo de pagamento de 10 anos, 20 anos e 30 anos. A Caixa colocou à disposição da nova modalidade, para começar, R$ 10 bilhões. Dependendo da procura, esse montante pode ser reavaliado.

Ao tomar o empréstimo, o mutuário já saberá de antemão quanto irá pagar de juros até o fim do financiamento. As taxas vão variar entre 8% ao ano e 9,75%, de acordo com o grau de relacionamento do cliente com o banco e a duração do contrato. O tomador poderá comprometer até 30% de sua renda com as prestações e financiar até 80% do valor do imóvel. A linha só vale para contratos novos.

— Teremos algo que realmente vai deixar a população com orgulho, porque vamos permitir que as pessoas tomem empréstimos por 20, 30 anos, sabendo desde o primeiro dia quanto que elas vão pagar — afirmou o presidente da Caixa, Pedro Guimarães.

Risco ficará com a Caixa

A nova linha faz parte do movimento iniciado pela Caixa em agosto para diversificar o crédito imobiliário e reduzir o custo para os tomadores, com o lançamento do empréstimo corrigido pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), usado na meta oficial de inflação. Em dezembro, o banco cortou os juros do financiamento atrelado à Taxa Referencial (TR) e, na semana passada, estendeu alinha indexada ao IPCA às construtoras.

Dependendo do desempenho da atividade econômica, os juros da nova linha poderão cair, disse Guimarães, ressaltando que o risco das operações será assumido integralmente pela Caixa.

Na nova modalidade, os consumidores poderão escolher entre sistemas de amortização do empréstimo: tabela Price, em que o valor da prestação é menor no início do contrato e vai subindo ao longo do tempo, e Sistema de Amortização Constante (SAC), em que o mensalidade vai decrescendo. No primeiro caso, o contrato é de até 20 anos e no segundo, de até 30 anos, porque o risco é menor, uma vez que o cliente já começa pagando a dívida principal e os juros.

Segundo simulação da Caixa, um financiamento de R$ 300 mil pela tabela Price teria uma prestação fixa de R$ 2.631,79 por 20 anos. No SAC, aprestação começaria com R$ 2.995,53 caindo para R$ 839,34 no prazo de 30 anos.

Claudio Hermolin, presidente da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi-RJ), considera a medida importante para a retomada do crédito imobiliário, que tem uma recuperação mais lenta, pois o consumidor precisa ter segurança financeira antes de assumir o financiamento de um imóvel.

Professor de Finanças do Insper, Michael Viriato observa que, apesar de os juros da nova modalidade serem maiores que os das outras linhas, o tomador de crédito tem mais segurança, já que não haverá surpresas futuras com variação de indexadores nas prestações:

— A primeira questão é se a prestação cabe no meu bolso. Se você vai tomar um crédito de 20, 30 anos, não saber o que vai pagar no futuro é ruim. Esse é um risco que se corre ao captar o empréstimo indexado ao IPCA.

Estímulo à portabilidade

Já Johnny Silva Mendes, professor de Economia da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), acredita que a nova linha deve estimular a concorrência entre os bancos. Ele lembra que muitos mutuários de outros bancos têm contratos mais antigos, com taxas de juros maiores, então a nova modalidade pode ser atraente para fazer a portabilidade do financiamento:

— É mais uma sinalização ao mercado do que necessariamente uma oportunidade para quem está prestes a concretizar novos contratos.

Para o presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic), José Carlos Martins, há uma quebra de paradigma:

— Imagina, algum tempo atrás, fazer um financiamento de 20 anos com juros fixos?

Presentes no evento, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e o ministro da Economia, Paulo Guedes, destaram a importância da continuidade das reformas, como a tributária e administrativa, para consolidar o crescimento da economia.

— Nosso histórico de juros e inflação não permitiriam que a gente estivesse aqui fazendo esse lançamento. O programa de reforma começou, mas precisamos continuar — disse Campos Neto.

O presidente da Caixa ainda antecipou que já foi aprovado um novo corte de juros no cheque especial — em novembro, a taxa já havia sido reduzida, de 13,5% para 4,95% ao mês.

Analítico: banco assume papel político de aproximar governo da classe média

A nova linha de crédito com taxas de juros fixos lançada ontem pela Caixa Econômica faz parte da estratégia de aproximar o governo da classe média. Na gestão de Jair Bolsonaro, a Caixa assumiu o papel de “exterminador dos bancos”, como o presidente mesmo anunciou em janeiro, sem esconder a satisfação, em uma de suas transmissões ao vivo por redes sociais: “Vale abrir conta lá, pois ela está na frente dos outros bancos.”

Nos últimos meses, a instituição, comandada por Pedro Guimarães, tem sido pioneira no lançamento de uma série de medidas que não só agradam a classe média, como incomodam e forçam os concorrentes a correr atrás. No segundo semestre de 2019, lançou o financiamento imobiliário corrigido pela inflação, ideia gestada dentro da equipe econômica e já imitada pelos outros bancos.

Não é à toa que o presidente da República estava presente no lançamento da Caixa ontem, para surfar nessa agenda positiva. Guimarães construiu uma relação sólida com o chefe, de quem não esconde a devoção.

A capilaridade da Caixa é invejável. A instituição financeira tem uma grande rede de agências próprias, além de um exército de lotéricas em quase todos os municípios brasileiros. Ela é o instrumento financeiro do governo sob medida para acenar com boas novidades para a classe média. Tornou-se, assim, um estratégico instrumento político.

Para o assalariado, ter uma linha de crédito previsível e aparentemente descomplicada ao longo dos anos é uma novidade bem-vinda, principalmente para quem procura alternativas fora do Minha Casa Minha Vida e de imóveis mais caros.

A estratégia não é só da Caixa, pois conta com o aval da equipe econômica. O ministro da Economia, Paulo Guedes, já disse que os bancos públicos estão aí para levar atividade bancária para o interior e para que essas pessoas possam ter recursos financeiros. “A Caixa é o banco do povo”, disse Guedes. O governo agradece.