O Globo, n. 31494, 29/10/2019. Sociedade, p. 25

Após 60 dias, manchas de óleo crescem e dependem da ação de voluntários

Ana Lucia Azevedo
Luana Ribeiro


Como o óleo, as comunidades atingidas por ele estão à deriva, 60 dias após o surgimento das manchas. Gente que construiu a vida sob a benção do mar agora teme o que virá nas ondas, já que o óleo continua a aparecer em praias do Nordeste.

Foi com o trabalho na pesca e na mariscagem que Ana Paula Santos, de 47 anos, se tornou a primeira pessoa de sua comunidade a se formar numa universidade e criou três filhos. Formada em Ciências Sociais, hoje é líder da comunidade de marisqueiros, na Ilhada Croa, em Barra de Santo Antônio, Alagoas. Quando o óleo chegou lá, no início do mês, pescadores e marisqueiros deixaram puçás e redes de lado e foram para praias, manguezais e recifes tirar o óleo.

— Muitas famílias correm o risco de passar fome. As pessoas estão com medo de comprar marisco e peixe, e os governos parecem não se importar. Não recebemos informações — diz Ana Paula, que articula a criação da primeira rede de mulheres pescadoras da Costa dos Corais, paradisíaca faixa de cerca de 200 quilômetros de litoral entre Alagoas e Pernambuco, onde fica Barra de Santo Antônio.

Pescadores e marisqueiros tiraram as manchas da areia, mas o óleo ainda chega aos manguezais da foz do Rio Santo Antônio Grande e, com ele, a incerteza sobre o futuro.

— As redes têm vindo sem camarão, e o cultivo de ostras foi atingido. As mulheres marisqueiras estão com medo de ir para o manguezal coletar e depois, na feira, não vender nada —conta ela.

Ontem, na Praia de Poças, em Conde, no norte da Bahia, o pescador e marisqueiro Janielson Oliveira de Souza, 39 anos, comemorava que o Corpo de Bombeiros e grupos de voluntários há dois dias finalmente tentavam limpar o “óleo velho”, que chegou no início do mês e atingiu areia, recifes de corais e manguezais. Até domingo, os pescadores e marisqueiros eram os únicos a remover o material. A sensação era de abandono, conta.

— A situação é ruim. Os corais estão muito sujos — lamenta Souza, que nunca teve outro lar além de Poças.

O óleo atingiu as poças — piscinas naturais — que dão nome à praia e servem de habitat para o espichado, um crustáceo nativo, cuja carne saborosa costumava atrair gente de longe para “mariscar”. Até a chegada do petróleo, os pescadores ganhavam a vida de dia no mar e à noite na areia, na mariscagem. “Era muita fartura”, explica o pescador.

As redes ainda voltam com peixe, mas, como em outras partes do Nordeste, não há fregueses para comprar. Na casa de Souza, a família está com medo porque não sabe se há contaminação e, mesmo que não haja, se haverá fregueses.

Em Salvador, pouco mais de duas semanas após a chegada de petróleo cru à cidade, em 10 de outubro, o cenário na Praia da Paciência, no bairro do Rio Vermelho, é de aparente normalidade. Descendo à faixa de areia, porém, começam a aparecer as marcas da tragédia ambiental que atingiu 254 localidades de 92 municípios nos nove estados do Nordeste, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama): pelotas do óleo, viscoso e brilhante ao sol, estão espalhadas ao longo da praia.

— Essa praia foi atingida por uma mancha grande de óleo, então hoje a gente tem um cenário bem complexo. Tem o impacto nos corais, há várias entranhas, buraquinhos, o sedimento do óleo se molda conforme o terreno—explica o administrador Miguel Sehbe Neto, 37 anos, um dos idealizadores do Guardiões do Litoral, grupo que agrega voluntários para fazer a limpeza dos locais aos quais o óleo chegou.

Foram criados um perfil no Instagram para divulgar os mutirões e uma campanha para arrecadar fundos, voltada para a compra de equipamentos e ferramentas e custeio de despesas como transporte. Em quatro dias, foram arrecadados pouco mais de R$ 57 mil, quase o triplo do valor pedido on-line, R$ 20 mil.

Ação federal

O governo Bolsonaro tem até hoje para provar à Justiça Federal se providenciou estudos sobre o impacto da contaminação por petróleo na saúde das pessoas que consomem peixes, crustáceos e moluscos eventualmente contaminados. A determinação é da juíza federal Telma Maria Santos, da 1ª Vara Federal em Sergipe, no curso da ação civil pública movida por procuradores da República dos nove estados do Nordeste.

O Ministério Público Federal (MPF), na ação que tramita em Sergipe, pediu que a União acione imediatamente o Plano Nacional de Contingência. A partir dos documentos fornecidos pelo governo, a juíza entendeu que o plano foi acionado e está em curso. Os procuradores apontaram dez pontos que provariam a inexistência do acionamento do plano e recorreram contra a primeira decisão judicial ontem, junto ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região.

Procurado, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu à reportagem.

Tragédia em 9 falhas

1 Falta de diálogo

Desde os primeiros dias do incidente, secretários municipais e diretores de agências ambientais estaduais queixam-se dos problemas de comunicação com a União, o que prejudica a realização conjunta de operações. Mesmo as vistorias de autoridades não coincidem — o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, provocou constrangimento no governo sergipano ao visitar o litoral do estado sem comunicação prévia.

2 Manual violado

O Ministério do Meio Ambiente cometeu uma série de violações nos processos listados em um manual que orienta a implementação do Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional (PNC). Dos 35 critérios listados para ativação do programa, há ao menos 18 que se cumpriam ou eram fruto de dúvida no início de outubro, quando o plano ainda não havia sido acionado .

3 Atraso no plano

Como os critérios do manual não foram obedecidos, o plano de contingência, que deveria ser acionado no dia 2 de setembro, só entrou em vigor 41 dias depois, em 11 de outubro. Segundo especialistas, o PNC não anularia completamente o impacto do óleo sobre as praias, mas poderia reduzi-lo significativamente. Tampouco foram informadas medidas preventivas para evitar a difusão da substância pelo litoral e a verba necessária para as operações.

4 Nota ignorada

O Ministério do Meio Ambiente ignorou uma nota técnica elaborada por um analista da pasta, que alertou que a extinção de três comitês poderia fragilizar a reação da União diante de incidentes de poluição por óleo. O documento foi assinado no dia 26 de abril, 15 dias após a publicação do decreto 9.759/2019, assinado por Jair Bolsonaro, que revogou colegiados considerados “supérfluos”. A tesourada atingiu os comitês concebidos pelo decreto de 2013 que criou o PNC.

5 Briga com ONG

Em sua conta no Twitter, Salles afirmou que, por “coincidência”, a embarcação Esperanza, do Greenpeace, estava navegando “justamente em águas internacionais,em frente ao litoral brasileiro, bem na época do derramamento de óleo venezuelano”. A ONG afirmou que, à época, o navio havia passado pela Guiana Francesa, e está atracado atualmente em Montevidéu. Diante da repercussão negativa, Salles voltou atrás e afirmou que o navio da ONG “não se prontificou a ajudar”.

6 Praia imprópria

Ao visitar Ipojuca (PE), o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, molhou os pés e as mãos na Praia do Muro Alto e declarou que ela estava “completamente apta à frequentação de turistas”. Naquele dia, porém, a praia era considerada imprópria pela Agência estadual de Meio Ambiente, por ainda ter “óleo visual”. Segundo a agência, mesmo após a ação de um mutirão de voluntários, o movimento das marés poderia contribuir para o aparecimento de manchas de óleo.

7 SOS voluntários

Por falta de equipamentos de proteção, voluntários que ajudam na limpeza de óleo em diversas localidades estão expostos a substâncias tóxicas. Na praia de Itapuama (PE), um grupo escreveu na areia “SOS” ao lado de uma mancha. Segundo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, algumas pessoas estão retirando o óleo do corpo com benzina, gasolina e querosene, substância ainda mais tóxica do que a vista no litoral. O ideal, diz ele, é limpar a pele com sabão.

8 Sem máquina

Na semana passada, o diretor de Assuntos Corporativos da Petrobras, Eberaldo Neto, afirmou que a estatal não tem os equipamentos necessários para combater o vazamento de óleo. Os centros de defesa ambiental da empresa são preparados para um óleo de composição mais leve. Já o visto no incidente que acomete o Nordeste é mais pesado, vem por baixo do oceano e, por isso, não é contido por barreiras antes do litoral.

9 Às escuras

As investigações enviadas à Marinha indicam dificuldade para delimitar o perímetro em que poderia ter ocorrido o vazamento de óleo. Na semana passada, dois estudos enviados à Força mostraram a possibilidade de o derramamento ter ocorrido entre 270 e 600 quilômetros do litoral, tendo como ponto de partida os estados da Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Até então, as estimativas variavam entre 600 e 800 quilômetros.