O Globo, n. 31446, 11/09/2019. País, p. 14

País registra 180 estupros por dia, maior patamar desde 2011
Aline Ribeiro


Ana* tinha só 4 anos quando um tio paterno, numa temporada morando em sua casa, passou a estuprá-la. Aproveitava a distração dos pais dela, que viam televisão na sala, para abusar da sobrinha na cozinha. Anos mais tarde, aos 10, Ana foi violentada de novo, dessa vez por um vizinho.

No último ano, 63,8% dos estupros reportados à polícia no Brasil foram cometidos contra vulneráveis — casos em que, como Ana, a vítima tem menos de 14 anos e é

considerada juridicamente incapaz de consentir uma relação sexual, ou ainda em que o abusado não consegue oferecer resistência, seja por deficiência, enfermidade ou pelo efeito de drogas. Os dados estão no 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

O relatório aponta que, desde 2011, quando se inicia a série histórica, o Brasil nunca teve tantos casos de estupro quanto no ano passado. Foram 66.041 — alta de 5% em relação a 2017. Por dia, 180 pessoas foram violentadas. Samira Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, alerta, porém, que ainda há subnotificação:

— Esse é um tema sobre o qual falamos muito pouco. Como ainda temos muita subnotificação, o problema é bem maior do que conseguimos medir.

A publicação traz, pela primeira vez, dados sobre o perfil das vítimas e dos autores dos abusos sexuais, com base em boletins de ocorrência da polícia. Segundo o relatório, 81,8% das vítimas são do sexo feminino, 50,9% são negras, e 48,5% brancas. No caso do estupro de vulneráveis, a maior parte dos casos ocorre aos 13 anos, entre meninas, e aos sete anos, entre os meninos. O levantamento mostra ainda que 75,9% dos agressores são conhecidos das vítimas.

A psicóloga Daniela Pedroso, do Hospital Pérola Byington, diz que as crianças abusadas costumam dar pistas. É preciso que os responsáveis fiquem atentos a qualquer mudança brusca de comportamento, como machucar animais, ter pesadelos, postura sexualizada e brincadeiras violentas com bonecas. Ou, ainda, a possíveis regressões, como voltar a fazer xixi na cama. A psicóloga enfatiza a importância de conversar com os filhos a respeito dos limites do toque:

— É preciso passar a informação de acordo com cada faixa etária, de maneira mais delicada, mais polida. Você não vai falar que as pessoas estupram. Você vai falar que ninguém tem direito de tocar no corpo dela — diz Pedroso.

*Ana é um nome fictício